Uma das grandes
transformações deste século foi a que se operou na família. Oiço dizer que a
família está em crise, isto é, está em vias de extinção. É claro que nós
continuamos a ter pais, a ser filhos, a ter primos e cunhados, e isso é a
família, Mas a família que está em crise é o agregado coeso, estável, fixado no
lugar, com um pólo de atracção, que era a mãe, por onde convergiam os elementos
familiares próximos. Esse papel da mãe, de função aglutinadora, desapareceu. A
mãe passou a ser uma mulher participante, consciente ou não, de uma classe que
é a classe das mulheres, que se organizou, mesmo sem organização concreta, num grupo
social, com os seus direitos próprios, além dos direitos gerais, em
consequência da luta que travaram durante longuíssimos anos para se libertarem
da “escravidão” dos homens e dos afazeres domésticos. A mulher sai portanto de
casa, de manhã, como o homem, e vai para o trabalho. Almoça, numa cantina ou em
qualquer sítio, como o homem. Só se distinguem entre si porque ao chegarem a
casa, ao fim do dia, ela vai fazer o jantar e ele vai ler o jornal ou ler a
televisão.
Então e as
crianças? As crianças são uns seres indefesos que não sabem viver por si
mesmas. Precisam de vigilância permanente e alguém terá que lha dar. De
manhãzinha a mãe não tem tempo de ir à caminha da criança fazer-lhe tagatés e
ajudá-la a acordar mansamente, e deixá-la ficar para quando estiver mais
desperta. Isto não é possível porque a mãe tem que ir para o emprego e chegar
lá a horas certas. Arranca-se a criança da cama de qualquer maneira, com sono
ou sem sono, a cabecear ou a palrar, mete-se-lhe pela goela abaixo a refeição
apressada, passa-se-lhe a toalha molhada pela cara, enroupa-se bem ou mal, e aí
vai ela num saco ou ao colo, transportada a correr para uma casa, perto ou
longe, onde mora alguém que toma conta de crianças, ou então para uma escola
infantil se tem idade para isso. A mãe deposita a criança e vai a acorrer para
o trabalho, porque precisa de ganhar dinheiro para pagar o depósito da criança.
Ao fim do dia vai busca-la, pega-lhe ao colo e a criança abraça-a efusivamente
rodeando-lhe o pescoço com os bracitos na ânsia comovida de ter encontrado o
que perdera.
Isto é um quadro
normal da vida das crianças nos dias de hoje. À noite, finalmente, estão todos
reunidos, a mãe na cozinha, o homem na saleta e a criança na cama.
Rómulo de Carvalho em Memórias
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