O Livro do Meio
Armando Silva
Carvalho e Maria Velho da Costa
Capa: José
Serrão
Editorial
Caminho, Lisboa, Novembro de 2006
Uma casa é uma casa como uma rosa é uma rosa.
E já que estás com a casa na boca, falemos de casas,
como disse o Herberto. Eu, hoje, tenho três casas, sou um felizardo. Durmo na
da mana, trabalho na minha e derramo-me na nossa, a de Peniche.
Aqui, na de lisboa, assaltam-me as lembranças do sexo,
as causas amantes, e fazem-me companhia duas ou três coisas essenciais. Não me
pedem comida, não me roçam as pernas e não me dão cuidados de higiene.
Uma é a pintura do Hogan, que me defende duma provável
miséria que já me ameaça. Comprei-a nas Belas Artes a uma senhora dada ao
espiritismo e que me apresentou mais tarde esse pintor das pedras solitárias.
A segunda é o espelho enorme e oval em que me olho de
frente enquanto escrevo (dantes usavam-se as caveiras). Ele lembra-me uma
grande amiga do porto, a M., que me deu a conhecer o seu grande amigo, o José
Cardoso Pires. Foi ele que mo ofereceu, em tempos mais narcisistas, e é um
impressionante reflexo de mim a meio-corpo, em moldura rica e trabalhada. Um
dia cheguei a casa e fui dar com uma encomenda gigante à minha espera. Eu não
adivinhava, Ajudou-me a porteira que quase caiu de cu ao ver o objecto nu. Que
rima! Passou-se já tanto tempo que pensei até mudar-lhe o sítio. Eu ficava mais
distraído do tempo, do meu tempo. Só que assim a velhice não me espanta. E o
espelho repete-me o que não repetiu à Madrasta da outra. Lembra-te de que és pó,
etc., etc.
E em terceiro lugar vem a bebida. E bem à mão, numa
mesinha de jogo (expressão que me fazia cócegas quando o objecto amado lhe
gabava as proporções delicadas). É a lírica mais consumível que alguma vez tive
na vida, tanto tempo passado, depois de ter escrito esse livrinho de nome tão
aberrante. Criatura volúvel, derramável, ergue-me no ar para me deixar aos
tombos, e me faz companhia em verso, prosa ou dura dor de corno.
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