quinta-feira, 15 de junho de 2017

OLHAR AS CAPAS


O Livro do Meio

Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa
Capa: José Serrão
Editorial Caminho, Lisboa, Novembro de 2006

Uma casa é uma casa como uma rosa é uma rosa.
E já que estás com a casa na boca, falemos de casas, como disse o Herberto. Eu, hoje, tenho três casas, sou um felizardo. Durmo na da mana, trabalho na minha e derramo-me na nossa, a de Peniche.
Aqui, na de lisboa, assaltam-me as lembranças do sexo, as causas amantes, e fazem-me companhia duas ou três coisas essenciais. Não me pedem comida, não me roçam as pernas e não me dão cuidados de higiene.
Uma é a pintura do Hogan, que me defende duma provável miséria que já me ameaça. Comprei-a nas Belas Artes a uma senhora dada ao espiritismo e que me apresentou mais tarde esse pintor das pedras solitárias.
A segunda é o espelho enorme e oval em que me olho de frente enquanto escrevo (dantes usavam-se as caveiras). Ele lembra-me uma grande amiga do porto, a M., que me deu a conhecer o seu grande amigo, o José Cardoso Pires. Foi ele que mo ofereceu, em tempos mais narcisistas, e é um impressionante reflexo de mim a meio-corpo, em moldura rica e trabalhada. Um dia cheguei a casa e fui dar com uma encomenda gigante à minha espera. Eu não adivinhava, Ajudou-me a porteira que quase caiu de cu ao ver o objecto nu. Que rima! Passou-se já tanto tempo que pensei até mudar-lhe o sítio. Eu ficava mais distraído do tempo, do meu tempo. Só que assim a velhice não me espanta. E o espelho repete-me o que não repetiu à Madrasta da outra. Lembra-te de que és pó, etc., etc.

E em terceiro lugar vem a bebida. E bem à mão, numa mesinha de jogo (expressão que me fazia cócegas quando o objecto amado lhe gabava as proporções delicadas). É a lírica mais consumível que alguma vez tive na vida, tanto tempo passado, depois de ter escrito esse livrinho de nome tão aberrante. Criatura volúvel, derramável, ergue-me no ar para me deixar aos tombos, e me faz companhia em verso, prosa ou dura dor de corno.

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