terça-feira, 31 de julho de 2018

DISSE E DESDISSE-SE VÁRIAS VEZES


Carta de Óscar Lopes, datada do Porto de 6 de Setembro de 1969 para António José Saraiva:

Primeiro tema: valor paradigmático e profético do Marx. O Marx (ou, melhor, o duo Marx-Engels) não escreveu um evangelho. Disse e desdisse-se várias vezes, ao longo de um enriquecimento constante de reflexão e experiência histórica. Quando uma pessoa hoje se declara marxista assume logo a responsabilidade de uma interpretação histórica e de uma interpretação estrutural do marxismo. Neste
sentido, sou e não sou marxista, como aliás o próprio Marx chegou a dizer de si mesmo.. Mas se insistir mais nos aspectos e interpretações em que não sou marxista, perco uma arma importante, que é o prestígio do próprio nome de marxista. Também sou e não sou democrata, kantista, cartesiano e até mesmo religiosos, A opção por rótulos como democrata, socialista e marxista, que são os que, por razões conexamente históricas e estruturalmente doutrinárias prefiro, significa a minha aceitação de certos fellowtravellers. Mas sou dos intelectuais portugueses que até hoje melhor conseguiram salvaguardar a sua independência judicativa.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

UMA RESPOSTA DIFERENTE


Os intelectuais que não estão de acordo com o P.C. quanto à questão da liberdade deveriam perguntar a si próprios o que fariam dessa liberdade com que tanto se preocupam. E então veriam – afastadas as preguiças, os interesses confessados de cada um (vida cómoda, devaneio, sadismos elegantes) – que não existe caso em que dêem uma resposta diferente da resposta colectiva do P.C.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

domingo, 29 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez.

Jean Cocteau

O FEITIÇO PASSA SEMPRE POR VAN MORRISON


A avó dizia que velhos só os trapos.
De Van Morrison, um rapaz da minha idade, se terá de dizer que quanto mais velho melhor. Assim como se diz do Vinho do Porto.
Um concerto memorável.
Gosto de tipos mal dispostos, que dão para um concerto apenas fazer o que sabem, não ligando puto ao público. Somente uns simulacros de uns «thamk yous», no more.
Aliás, é ideia minha que a maior parte daquela gente que apareceu no concerto, do concerto em si pouco se importaram. Uma hora depois do concerto começar ainda estava a entrar gente que entendeu que era melhor acabar o jantar, ficar a larachar e aparecer só para mostrar as indumentárias e distribuir kisses e olás, coisa de tias-finas-flores-de-Cascais.
Em final de espectáculo, Morrison retira-se de palco e deixa a banda – brilhantes executantes! – a improvisar largamente num final empolgante.
Van Morrison não mais foi visto.
Coisas só alcance dos génios.
Deixo por aqui uma das canções da noite, «Sometimes we Cry), apenas a voz de Morrison, mas no espectáculo constituíu um brilhante dueto com a negra Dona Masters, uma das duas moças dos coros.
Simplesmente brilhante!

TENHO UM METRO E SETENTA E OITO


Vamo-nos aproximando do das derradeiras páginas das Memórias de Rómulo/Gedeão.
Conta agora aos tetranetos as homenagens que lhe fizeram em vida:

«…aqui para nós que ninguém nos ouve, achei demasiadas tantas homenagens. Não me lembro de nenhum caso como este. Foi talvez único. Eu imagino como os meus colegas de çetras, das poesias e das prosas, terão franzido o sobrolho à medida  que foram tendo notícia dos acontecimentos. Mas que é isto? A surpresa deles teria sido igual à minha. Achei sinceramente que foi demais.»

No dia 17 de Dezembro de 1966, a Escola Secundária Pedro Nunes, antigo Liceu Pedro Nunes, homenageou o seu antigo professor:

«Comecei por efectuar duas visistas aos meus antigos locais de trabalho que deixei há vinte e um anos, em 1975. A primeira foi ao Laboratrio da Física à entrada do qual descerrei o pano que cobria uma lápide sobre a porta que atribuía o meu nome àquele espaço. Lá dentro tudo em ordem, o material nas prateleiras dos armários (à excepção das peças roubadas pelos alunos após o 25 de Abril), e a minha mesa de carpinteiro, que o reitor de então lá pusera a meu pedido, onde saboreei longas horas em que nela serrei, limei, martelei, preguei».
(…)
«Num dos últimos dias do mês de Dezembro a Editora João Sá da Costa lançou ao público uma edição da poesia de António Gedeão intitulada “Poesia Completa”. É uma edição luxuosa, de grande formato, que reúne toda a minha obra poética, os seis volumes que publiquei, ilustrada com dezasseis estudos do consagrado pintor Júlio Pomar. A obra custa um pouco menos do que recebo, em dois dias, do meu vencimento de miserável reformado. Também haverei de ser condecorado por ter conseguido viver com tão pouco.»
(…)
«Reparando em tanta e tanta gente que se me dirigiu, por escrito, ou por boca, em tanta gente que participou nas diversas homenagens, gente de nomeada, professores universitários, investigadores, cientistas, avulta o desinteresse dos letrados, dos escritores, dos chamados intelectuais. O reduzidíssimo número dps que se manifestaram, três ou quatro, fizeram-no porque foram especialmente convidados para colaborarem, como foi o caso de Urbano Tavares Rodrigues, que estou certo nunca se lembraria de me escrever, dando-me cumprimentos, se não o tivessem escolhido para falar sobre mim na sessão da Academia das Ciências. Nem um só escritor se lembrou de me enviar um cartãozinho de cumprimentos. Nem um só. Vocês, meus queridos tetranetos, que me conhecem bem, sabem que isto, em mim, não é motivo de aborrecimento, de desagrado, de ressentimento, de protesto, mas apenas motivo de reparo. Reparei que nenhuma pessoa de letras, espontaneamente, me cumprimentou. Recordei até aquele rapaz, de nome João de Melo, escritor, com quem um dia conversei, que em certo momento me disse que eu era “um grande poeta. Sim – disse eu. Tenho um metro e setenta e oito. Ele não se riu, nem sorriu. Olhou-me sério e de sobrancelhas carregadas.»

Rómulo de Carvalho em Memórias

Legenda: Liceu Pedro Nunes

NOTÍCIAS DO CIRCO


O caso do deputado do Bloco de Esquerda que mergulhou na especulação imobiliária, promete aquecer, por uns dias, o Verão que tão chocho tem andado.
Sobre o tema, FerreiraFernandes tem, hoje, no Diário de Notícias, um texto clarinho, clarinho como água:

sábado, 28 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Por que será que as palavras se servem tantas vezes de nós, vemo-las a aproximarem-se, a ameaçarem, e não somos capazes de afastá-las, de calá-las, e assim acabamos por dizer o que não queríamos, é como o abismo irresistível, vamos cair e avançamos.

José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis

NOTÍCIAS DO CIRCO


Quatro militares da GNR, numa operação STOP em Loures, mandaram para uma viatura que circulava sem chapa de matrícula.

A viatura era conduzida pelo juiz desembargador Neto de Moura.

Este juiz, actualmente no Tribunal da Relação do Porto, foi o relator de um acórdão polémico sobre um caso de violência doméstica. No acórdão, Neto de Moura faz censura moral a uma mulher de Felgueiras vítima de violência doméstica, minimizando este crime pelo facto de esta ter cometido adultério, invocando a Bíblia, o Código Penal de 1886 e até civilizações que punem o adultério com pena de morte, para justificar a violência doméstica.

Face ao ocorrido o  chefe da patrulha elaborou uma participação dirigida ao Conselho Superior da Magistratura a denunciar que o juiz Neto de Moura «viu e ignorou a ordem de paragem dos militares da GNR», e, depois de interceptado, manteve uma «atitude provocatória, intimidatória e ofensiva» perante os elementos policiais.

Os arguidos prestaram declarações, enquanto testemunhas, no Conselho Superior de Magistratura, que arquivou o inquérito disciplinar e foram absolvidos pela primeira instância, mas o juiz recorreu para o Tribunal de Relação de Lisboa, que lhe deu razão.  

O acórdão da Relação de Lisboa sustenta que «não se pode dar como provado» que o assistente passou junto dos arguidos.

Neto Moura juntou aos autos afirmações em que sustenta que  «os agentes policiais, geralmente, mentem» e os desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa a validarem esta posição.

Os quatro militares foram condenados a uma multa de 2340 euros por denúncia caluniosa e falsidade de testemunho e ao pagamento de 9000 euros ao juiz desembargador Neto de Moura.

O Comando da GNR irá expressar, junto das entidades competentes - judiciais e da tutela -, o seu desagrado pelas afirmações indecorosas produzidas no âmbito do processo judicial e garantem todo o apoio aos quatro militares da corporação.

Chegados aqui, o cidadão comum guarda para si que, muito dificilmente, voltará a acreditar na justiça portuguesa, um sítio pessimamente frequentado.

TER O SEU PRÓPRIO CANTO PARA VIVER


O senhor Salvador fará o favor de tirar a minha conta, só fico no hotel até sábado, e tendo dito assim, com esta secura, logo se arrependeu, porque Salvador era a verdadeira imagem da surpresa magoada, vítima de uma deslealdade, ali com a chave na mão, não se trata assim um gerente que tão bom amigo se tem mostrado, o que deveriam ter feito era 134 chamarem-no de parte, Olhe, senhor Salvador, eu bem não queria, desculpe, mas não, os hóspedes são todos uns ingratos e este o pior de todos, que aqui veio dar à costa, sempre bem tratado apesar de se ter metido aí com uma criada, outro eu fosse e tinha-os posto na rua, a ele e a ela, ou queixava-me à polícia, bem me preveniu o Victor, mas este meu bom coração, toda a gente abusa de mim, ah, mas juro que é a última vez que me apanham. Se os segundos e minutos fossem todos iguais, como os vemos traçados nos relógios, nem sempre teríamos tempo para explicar o que dentro deles se passa, o miolo que contêm, o que nos vale é que os episódios de mais extensa significação calham a dar-se nos segundos compridos e nos minutos longos, por isso é possível debater com demora e pormenor certos casos, sem infracção escandalosa da mais subtil das três unidades dramáticas, que é, precisamente, o tempo. Num gesto vagaroso, Salvador entregou a chave, deu ao rosto uma expressão digna, falou em tom pausado, paternal, Espero que não seja por ter o nosso serviço desagradado em alguma coisa ao senhor doutor, e estas modestas e profissionais palavras comportam perigo de suscitar um equívoco, pela acerba ironia que facilmente encontraríamos nelas, se nos lembrarmos de Lídia, mas não, neste momento Salvador só quer exprimir a decepção, a mágoa, De modo algum, senhor Salvador, protestou com veemência Ricardo Reis, pelo contrário, o que acontece é que arranjei casa, resolvi ficar de vez em Lisboa, uma pessoa precisa de ter o seu próprio canto para viver, Ah, arranjou casa, então, se quiser, empresto-lhe o Pimenta para o ajudar a transportar as suas malas, se é era Lisboa, claro, É, é em Lisboa, mas eu tratarei disso, muito obrigado, qualquer moço de fretes as leva. O Pimenta, superiormente autorizado pela oferta liberal dos seus serviços, curioso por conta própria e adivinhando a curiosidade de Salvador, para onde será que ele vai morar, permitiu-se a confiança de insistir, Para que há-de estar o senhor doutor a pagar a um moço, eu levo as malas, Não, Pimenta, muito obrigado, e, para prevenir outras insistências, Ricardo Reis fez adiantadamente o seu pequeno discurso de despedida, Quero dizer-lhe, senhor Salvador, que levo as melhores recordações do seu hotel, onde sempre fui muito bem tratado, onde sempre me senti como em minha própria casa, rodeado de cuidados e atenções inexcedíveis, e agradeço a todo o pessoal, sem excepção, o carinhoso ambiente de que me rodearam neste meu regresso à pátria, donde já não penso sair, a todos muito obrigado, não estavam ali todos, mas para o caso tanto fazia, discurso como este não o tornaria Ricardo Reis a fazer, tão ridículo se sentira enquanto falava, e, pior do que ridículo, usando involuntariamente palavras que bem poderiam ter acordado pensamentos sarcásticos nos seus ouvintes, era impossível que não tivessem pensado em Lídia quando ele próprio falava de cuidados, carinhos e atenções, por que será que as palavras se servem tantas vezes de nós, vemo-las a aproximarem-se, a ameaçarem, e não somos capazes de afastá-las, de calá-las, e assim acabamos por dizer o que não queríamos, é como o abismo irresistível, vamos cair e avançamos. Em poucas palavras retribuiu Salvador, nem precisaria, bastava-lhe por sua vez agradecer a honra de terem tido o doutor Ricardo Reis como hóspede, Não fizemos mais do que o nosso dever, eu e todo o pessoal iremos ter saudades do senhor doutor, não é verdade, ó Pimenta, com esta súbita pergunta desfez-se a solenidade do momento, parecia que apelava para a expressão de um sentimento unânime, e era o contrário disso, um piscar de olhos enfim malicioso, não sei se me estás a entender. Ricardo Reis entendeu, disse Boa noite, e subiu para o quarto, adivinhando que ficavam a falar nas suas costas, a dizer mal dele, e já pronunciando o nome de Lídia, que mais seria, o que não supunha é que fosse isto, Hás-de ver, depois de amanhã, quem é o moço de fretes, quero saber para onde é que ele se muda.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

FOI POUCO...PACIÊNCIA. MAS FOI DE BOA VONTADE


Em pleno Verão quente de 75. Mário-Henrique Leiria mostra-se desesperado, cansado de tudo.

Em carta de 16 de Julho, a partir de Carcavelos, escreve à querida Isabel dando conta do que vai acontecendo no pedaço político, à espera de uma qualquer clarificação:

«Sabes do PS e do PPD. Foi como devia ser, sempre te disse. As coisas têm que se classificar e é realmente realmente conveniente saber quem temos pela frente. Já te disse há tempos que realmente não precisamos para nada de social-democratas nem de socialistas (ditos) totalmente comprometidos com a burguesia fácil e o capitalismo europeu»

O final da carta é amargo, doloroso… cruel…

«Notícias propriamente minhas, poucas tenho. Tenho andado sem me poder mexer, mas isso já é hábito consuetudinário . Estou desempregado full time vai para três meses. O COISO, onde eu tinha acabado de chegar a director interino, morreu em consequência do “CASO REPÚBLICA”, e de eu não estar disposto a fazer fretes à social-democracia. Pois.
A Jovília vai ser internada no Instituto do Cancro para ser operada. Sabe o que tem, e, às vezes, chora. Coitada. Espero que morra. É mais barato.
A mãe anda mais parva. Cansaço, sei lá… às vezes fica tempos sem perceber nada. Aconselhei-lhe um bife. Não quis. Coisas…
O cão vai óptimo. Morde que se farta.
Olha, sabes menina, estou num cansaço total. Creio que já dei a colaboração que tinha a dar. Foi pouca… paciência. Mas foi de boa vontade.»

Em  Depoimentos Escritos

Legenda: capa do 2º número do semanário O COISO, onde Mário-Henrique Leiria chegou a director-interino. Reprodução tirada do blogue Portadaloja.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

OLHAR AS CAPAS



Terceira Idade

Mário Dionísio
Obras de Mário Dionísio nº 10
Publicações Europa-América, Lisboa s/d

(1 de Julho de 81: morte do Carlos de Oliveira)

É hoje o primeiro dia
em que há mundo sem ti

Esforço-me por entender o sem sentido disto

Mas não se pensa o que se chora
Espanto-me sim de esta cidade para mim vazia
ser para os outros como sempre a vi

Que pode haver agora?
Que enganosa miragem?
Tu não foste fazer uma viagem
Tua ausência não é um intervalo

Vai-se indo pouco a pouco o porque existo
E nunca mais também sem ti
saberei sequer reinventá-lo

quarta-feira, 25 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se feliz por isso,: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de grandes ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobre-lhe um cancro e acabou-se. Mas, hoje, agora tem essa emoção.

Philip Roth em A Mancha Humana

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OLHAR AS CAPAS


Atrás da Cortina

Earl Derr Biggers
Tradução: Alfredo Ferreira
Revista para Portugal por António Ramos Rosa
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 69
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Bill Rankin continuava imóvel diante da máquina de escrever, procurando desesperadamente uma introdução para a entrevista que tinha de redigir. Eram cinco e meia; a rua, dez andares abaixo, estava cheia de gente que regressava do trabalho; porém, ali em cima, na redacção do Globe, reinava momentânea calma. De todas as lâmpadas com quebra-luz verde que existiam no aposento, somente a que oe3ndia sobre a máquina de escrever de Rankin estava acesa, espalhando uma claridade lívida sobre a folha de papel em branco enfiada na máquina. No seu cubículo, do outro lado da porta envidraçada, estava sentado o editor do Globe; era o único ser humano que se via por ali. E esse, a dar ouvidos aos colegas que trabalhavam com ele, nada tinha de humano.
Bill Rankin voltou à sua entrevista. Durante um breve momento ficou imerso em profunda meditação; depois, os dedos compridos e ágeis procuraram as teclas. Começou a escrever.

SOU MUITO MAIS SÁBIO


Porque busco entender-te
sou muito mais sábio
que os meus mestres.

As tuas ordens
só porque as aceito
tornam-me mais esperto do que os velhos.

Minha boca está doce, não do mel,
mas do teu nome só.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

A TRAGÉDIA DO FOGO


Olhamos as imagens que as televisões, a cada instante, nos mostram.
Números provisórios da tragédia: 80 mortos, mais de 200 feridos, ainda centenas de pessoas sem se saber onde estão, que lhe aconteceu, ais de 1.500 residências destruídas, a área florestal ardida é superior a dois mil hectares.
 Há um ano, em Pedrógão, sentimos tragédia semelhante.
Apenas o registo.
Outras palavras não servem para nada.

terça-feira, 24 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


O género humano não pode suportar muita realidade.

T.S. Eliot

OLHAR AS CAPAS



O Verdadeiro Oeste

Sam Sheppard
Tradução: António Feio
Capa: João Botelho
Edições Cotovia, Lisboa, Outubro de 1992

Lee: Nunca pensei qu’a velhota fosse tão desconfiada.
Austin: Porque é que dizes isso?
Lee: Esta manhã dei uma volta por aí. Tem cadeados em o tudo qu’é sítio. Cadeados pequenos, cadeados duplos, cadeados com correntes… O que é qu’ela terá assim tão valiosos?
- Austin: Antiguidades. Sei lá.
Lee: Antiguidades? Trouxe tudo o qu’havia na outra casa. Toda tralha que costumávamos ter à nossa volta, lembras-te? Pratos e talheres…
Austin: Para ela devem ter calor sentimental.
Lee: Valor sentimental. Pois! É quase tudo lixo. Ainda por cima, imitações foleiras. Gravuras do Idaho, coladas na loiça. Diz-me lá: quem é que gosta de comer num prato com o Estado de Idaho, feito estúpido, a olhar pr’a gente? Cada vez que se dá uma garfada, vê-se mais um bocado do estado…
Austin: Bom, para ela devem ter um significado especial, senão não tinha ficado com eles.
Lee: Pois, mês eu é que não gosto de levar com o Idaho nas ventas quando ‘tou a comer. Quando ‘tou a comer, ‘tou em casa. ‘Tás a perceber? Não ando p’raí a planar, ‘tou em casa! Não preciso de pensar no Idaho. Passo muito bem sem isso.

SE TIVER OLHOS PARA VER E SE OS QUISER USAR:


E a glória? Essa miragem que tira o sono a tan­ta gente?
 Manda-me a prudência calar o que penso da gló­ria e, muito principalmente, do que tantos fazem para atingi-la. Lá viria o «estão verdes». Fatalmen­te. E sei lá se com razão. Nunca a gente se conhe­ce bem até ao fundo.
 Direi só, serrazinento, que a acho dama engana­dora e tanto mais na época das grandes montagens publicitárias, com poderosas ligações multinacio­nais, tudo o que vem é ganho, etc. e tal. Uma fa­mosa escritora (não só) policial pensa acertadamen­te que «talvez para um escritor muita da sua sorte venha do facto de ter a publicidade certa no mo­mento certo». Publicidade. A explicação de (quase) tudo. Num livrinho que me interessou bastante, sobre a fabricação (será o termo exacto) de contos e romances, não forçosamente policiais, a mesma autora emprega com sintomática frequência o ver­bo ou a ideia de «vender» onde até agora se tem dito, por exemplo, «agradar»: «para conseguir ven­der...», «encontrar um mercado para isto», «uma história que se venderá», «um livro é tanto mais facilmente vendido para televisão e cinema, se...», se «se pretende um determinado mercado...» 
 Pobre do livro transformado em vistoso objecto de consumo. Pobres de todos nós. «Já leste?», «Não, mas tenho lá para ler. Parece que é muito bom». E as edições saindo, tanto melhor assim, e as traduções também (certos agentes são duma criatividade de deixar a boca aberta), e Portugal transformando-se, que me dizem a isto?, num vi­veiro de criadores com manifesta surpresa da Euro­pa e arredores. Um quinto império no papo. Ape­sar da língua aos tropeções, sob vários aspectos, não se fala agora nisso, quem cá ficar verá. Se tiver olhos para ver e se os quiser usar.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Mário Dionísio e João José Cochofel, fotografia tirada de Autobiografia

segunda-feira, 23 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Hoje, penso que não: que adoeci, que fui envelhecendo, que há poucos livros úteis, que, para sobreviver, temos de trabalhar… e o que o trabalho sem amor mata.

Raul de Carvalho

É UM INTRUJÃO!


É muito importante o livro que reúne a correspondência trocada entre António José Saraiva e Óscar Lopes e que «andamos a ler» já há algum tempo.

Mas o conteúdo é tão denso e rico que se torna difícil, em breves trechos, dar uma ideia, pálida que seja, do muito que nestas cartas se fala.

Dos dois, é António José Saraiva que ocupa a maior parte do volume.

Algumas vezes traz à conversa os seus problemas de saúde, económicos, a sua solidão de intelectual em França.

Nesta carta, datada de Paris, 5 de Julho de 1969, Saraiva volta a referir os problemas que, na altura, manteve com o editor Francisco Lyon de Castro das Publicações Europa-América.

Em Outubro de 1965, carta minha de 31, lembrei ao Lyon de Castro que a 8ª edição da História da Literatura (Colecção Saber), então a imprimir, devia levar a minha chancela, segundo o contrato assinado. Respondeu em 4 de Novembro que o «o livro já estava à venda» e por isso não podia ser rubricado.
Em 4 de Abril de 66 o Lyon de Castro noticiava-me que a História da Literatura tinha sido proibida pela Censura.
Em 19 de Maio de 1967, os serviços de contabilidade da Europa-América comunicavam-me, incidentalmente, que a proibição tinha sido levantada, «encontrando-se de novo a obra à venda».

Segundo saraiva houve um longo silêncio de Lyon de Castro. Só volta a escrever em 26 de Agosto de 1968 e não falava da História da Literatura.

Entre esta data e 19 de Março de 1969 Saraiva recebeu 8 cartas do editor e em nenhuma era falada o que se passava com o livro.

«Intrigado com isto perguntei-lhe em carta de 24-3-69 notícias do livro (além de outros assuntos). Em carta de 10 de Abril respondeu quanto a este ponto: «História da Literatura portuguesa; responde-se à parte». Mas na carta não vinha qualquer aparte sobre o assunto.
Em carta de 29 de Abril dizia-me o seguinte: «A libertação do livro determinou um movimento de vendas que nos forçou a uma rápida reedição de 3000 exemplares em Dezembro/68. No Brasil também se sabia que a obra estava proibida e logo que ela foi libertada fizemos uma intensa propaganda o que determinou uma grande procura, a que tivemos de responder rapidamente.»

António José Saraiva conclui que Lyon de Castro não lidou com lisura com ele.

«Só vejo uma solução para o meu problema com o Lyon de Castro: é desligar-me dele. Até hoje foi o único editor intrujão que tive e já fui editado em cinco casas.»

Nada pacífica a vida de António José Saraiva por terras de França.

Dificuldades de toda a ordem.

Em P.S. lamenta-se:

«Ainda não recebi os tais 7500$ da Porto Editora de que falavas numa carta.»


Legenda: Capa da 1º edição da História da Literatura Portuguesa (1950) e incluída na Colecção Saber.

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Filmes Pornográficos

Estes que não actores se alugam para filmes
da mais brutal pornografia crua
em que não representam mas só fazem
tudo o que possa imaginar-se e a sério
com a máquina espreitando bem de perto
por ângulos recônditos os gestos,
os orifícios penetrados e
quanto os penetra até que o esperma venha,
por certo são dos que prazer mais sentem
sabendo que afinal se exibem para tantos olhos.
São máquinas de sexo. Às vezes belas,
sem dúvida atraentes muitas delas,
imagens escolhidas como sonhos de
que possa ser a máquina perfeita.
Mas na verdade sentirão prazer?
E na verdade o dão no que se mostram?
Tão máquinas apenas – sem de humano
não digo só que o toque da carícia abrupta
mas mesmo uma atenção de sábio acerto
profissional de orgasmos a filmar –
que nada resta destes actos vistos
sequer desse animal mais que espontâneo
em corpos se afirmando que não falam
mas se penetram ao acaso dados.
Nada de humano ou de animal humano
flutua nestes ou na imagem deles:
até porque são vistos como nunca vistos
os actos cometidos ou espreitados,
e mesmo o esperma do ininterrupto coito
(para quem paga estar seguro de
não ser fingido nada o que foi feito)
ejaculado ou vendo-se escorrer
do corpo mais passivo numa cena
é como imitação que nada inunda
senão o olhar tornado a mesma máquina
que tão perto o foi filmar ampliado.
Horrível é tudo isto. Mas no entanto,
mecânico e brutal, sem graça nem beleza,
roubando ao imaginar quanto é sentido
porque se amor se faz mal pode ver-se,
isto possui uma nobreza estranha
e uma franqueza nua que nenhum amor
a si mesmo confessa: e contradiz
quanto mistério exista, que outro mais profundo
assim nos revela: actos de amor
são tantos actos de amor quanto são actos
de actores ocasionais para ele feitos
que todos somos desde que ele se faça.

Jorge de Sena de Conheço o Sal… e Outros Poemas em Poemas Escolhidos.


domingo, 22 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Seria importante referir o teu sorriso de menina, os teus vinte e nove anos, a tua morte em New York, a tua Upsala longínqua, a chuva intensa quando te não vi, as garrafas bebidas, o cinema, o cinema sempre, e uma casa aberta para o sol. Quero dizer: um dia assim em 1974; a última visão do castelo desenhado a tinta da China.

Eduardo Guerra carneiro em Como Não Quer a Coisa

SE LÁ CHEGARES...


Recomeçaste a passar a noite sòzinho, no pequeno cinema, sentado a um canto, fumando, saboreando a vida e o fim do dia. Olhas o filme como um garoto – pela aventura, pela pequena emoção estética ou mnemónica. E gozas, gozas imensamente. Será assim aos setenta anos, se lá chegares.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

Legenda: pintura de John French Sloan

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Roger Vailland é um escritor datado, mas marcou muita gente nos anos 60/70.

Passados todos estes anos, ainda me confesso um leitor agradado de São Roger Vailland.

Vailland teve uma passagem curta pelo Partido Comunista Francês.

No 2º volume de Escritos Íntimos dá conta desse findar de caminho militante com o Partido.

Recorde-se:

«5 de Junho de 1956

Regresso de Moscovo.

À minha chegada, quinze dias antes, a estátua em pé de Estaline estava ainda no hall do aeroporto. No dia da minha partida, continuava lá, mas coberta com um resguardo branco. Em breve a vão retirar. Os homens da construção civil fixá-la-ão com nós corredios e puxarão a talha.
Cheguei a amar os tiques da sua linguagem. Colocava as primeiras pedras de um raciocínio, depois dizia «prossigamos»; adorei isso. Mas ao regressar a casa, foi bem preciso retirar o seu retrato da parede, por cima da minha secretária; deixá-lo, seria ter tomado partido contra aqueles que, lá, prosseguem a construção do mundo que ele começou a edificar, e a favor daqueles que, aqui ou algures, aspiram à tirania.
Nunca mais colocarei o retrato de um homem nas paredes da minha casa.
No canto da biblioteca reservado aos historiadores da Revolução Francesa tirei também as duas grandes gravuras da época, intituladas Jornada de 21 de Janeiro de 1793, Jornada do 16 de Outubro de 1793; vê-se aí o carrasco mostrar à multidão a cabeça de Capet, um outro carrasco erguer o cutelo da guilhotina, enquanto os auxiliares mandam subir para o cadafalso Maria Antonieta. A multidão aplaude. Convencional, teria votado pela morte de Luis XVI e pela de Maria Antonieta; quero com isto dizer que hoje ainda, em circunstâncias análogas, votaria a morte. Mas Meyerhold que amo, que amava, foi fuzilado, em execução de um julgamento injusto, ditado por Estaline, que eu amava. Nunca mais poderei alegrar-me por o sangue ser vertido, mesmo o dos meus inimigos, excepto se for por mim mesmo, em combate leal.»

Lendo Vailland percebem-se as razões por que Salazar, a PIDE e a censura, perseguiram, ou tentassem perseguir, quem o  lia, para além de outros.

Mas saber que a Fundação Calouste Gulbenkian – a mando salazarista? – também atentasse contra as nossas leituras e ideias é algo que, de modo algum, deixa a reputação gulbenkiana no limiar das ruas da amargura.

Tinha um Conselho de Leitura e, em Janeiro de 1963, para análise de Fim de Semana de Roger Vailland foi escolhido o escritor e filósofo António Quadros, nada mais, nada menos que, filho de António Ferro, braço direito de Salazar e da escritor Fernanda de Castro.

Muitos já esqueceram, mas é depura higiene, física e intelectual, não esquecer o quanto a minha geração, juntamente com outras, estas gerações foi rigorosamente vigiada.

Mas, como escreveu Carlos de Oliveira:


Por mera curiosidade – e não só! - fica o registo da «leitura» de António Quadros:

«Género: romance
Valor: Bom
Intenção: recreativa
Acessibilidade Fácil
Idade leitores: Mais de 21 anos de sólida formação moral e intelectual
Aceitável, apenas para reservas
Livros do Brasil: 35$00
Preço: 35$00
Assunto e outras observações: O tema é típico de R. Vailland: a mulher, para conservar o marido, escritor célebre, tem como processo garantir-lhe inteiramente a liberdade, e, até, favorecer as suas conquistas. O escritor precisa, de quando em quando, do que chama “uma festa”… Depois, regressa a casa, onde a mulher, além de compreensiva, é confidente das aventuras do marido.
O livro seria normalmente de recusar, mas não há dúvida de que tem um alto nível literário. Superior até a outros de Vailland, escritor muito representativo. Por isso, consideramo-lo aceitável para reservas e para adultos de sólida formação.

OLHAR AS CAPAS



Fim de Semana

Roger Vailland
Tradução: Gina de Freitas
Capa: Infante do Carmo
Colecção Dois Mundos nº 68
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- E o teu romance?
- O meu romance – diz Duc – gostaria que as minhas personagens, algumas das minhas, enfim, pelo menos duas personagens do meu romance, mantivessem uma em face da outra relações de Estado soberano para Estado soberano.
- Léone e tu, são soberanos? Pergunta Lucie.
- As mulheres – diz Jean-Marc – levam sempre tudo para a anedota.
- Creio – responde Duc a Lucie – creio que somos soberanos, não desde há muito tempo, é fruto de uma longa série de guerras, para cada um de nós, que decláramos a toda a terra, e cada um a si próprio, de ano para no, durante vários anos.

sábado, 21 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Eu sou uma pessoa que, no fundo, não sou amiga de ninguém. Mas sou justa com todo o mundo.

Agustina Bessa-Luís em Agustina por Agustina

A DESTRUIÇÃO DA VIDA SOBRE A TERRA


Estamos a chegar às últimas palavras das Memórias de Rómulo de Carvalho.
O que se segue, foi o que o professor, poeta e cientista, quis deixar aos seus tetranetos  no dia em que fez 90 anos:

E assim chegámos ao ano de mil novecentos e noventa e seis, ano em que completei noventa anos de idade no dia 24 de Novembro.
Pesai estas palavras, meus queridos tetranetos, e reconhecei quanta paciência é necessária para viver tanto tempo. Pode ser que os progressos da Ciência façam desta idade apenas um valor médio das idades nos anos dois mil e tal em que vocês caminhem sobre este planeta. Mas também é possível que essa mesma ciência já tenha destruído as vossas vidas. Por enquanto ainda vamos aguentando tudo isto. Mas qual será o meu futuro ou seja o vosso presente? As águas dos rios e dos mares estão cada vez mais poluídas. As fábricas lançam neles os resíduos do que produzem e envenenam-nos. Os peixes mortos, aos montões, flutuam nessas águas. Os animais dão-nos carne engordada com os produtos químicos que s obrigam a engolir. As florestas estão a ser completamente dizimadas pelo fogo ou pelas serras que as cortam. A atmosfera está poluída com os produtos gasosos que as fábricas e os motores dos automóveis libertam incessantemente. Tudo se encaminha para a destruição da vida sobre a Terra, e creio que todos estamos nisso de acordo, excepto talvez o papa. E a tudo isto Deus assistirá repimpado na sua poltrona de nuvens.

Rómulo de Carvalho em Memórias

NOTÍCIAS DO CIRCO


Aproxima-se o período de férias e a Assembleia da República entra num frenesi para aprovar leis.
Os jornais e as televisões vão dando conta desses frenéticos dias.
Mas, segundo a Lusa, ainda houve tempo para Bruno de Carvalho, ex-presidente do Sporting e que, apesar de suspenso de sócio, quer concorrer às eleições de 8 de Setembro.
O homem é um louco perigoso que há muito deveria estar internado num qualquer local que cuide de loucos e afins.
Contudo, reuniu-se esta quinta-feira com o núcleo de deputados sportinguistas na Assembleia da República e afirmou que «as pessoas querem» a sua recandidatura.
«A recetividade é grande, as pessoas querem esta recandidatura. São cinco anos de trabalho, obra feita, de amor e dedicação ao Sporting. Queremos seguir em frente, aprendendo com o que fizemos de bem e de menos bem. Olhando também para os erros, e perante o que foi bem feito, é sempre mais importante para o Sporting continuar este trabalho e com o líder de um projeto que se tornou vencedor.»
Mas está tudo doido!

OLHAR AS CAPAS


Limiar dos Pássaros

Eugénio de Andrade
Capa: Armando Alves
Limiar, Porto, Setembro de 1976

Nada sabia de marés, com algumas partias, com outras regressavas. Um dia, já há muito, deixei de te ver. Disseram-me que morreste, e que foste meu pai. É capaz de ser verdade, e ultimamente tenho imaginado como terias morrido. Espero que tenha sido sobre os teus olhos, que foram muito belos, que a morte haja começado com rigor o seu ofício. Era neles que incidia o meu desejo. Quando penso em ti, vejo-te de órbitas vazias, um sangue escuro invadindo-te a boca. Apodreces como toda a gente, só um pouco mais de lado, porque a morte deve ter prosseguido o seu trabalho sobre o coração. Que procurava ela quando o levou à boca? Está agora sobre o centro do teu ser, aí refocila voluptuosamente, crava os dentes até arrancar os teus mais viris ornamentos e cuspir-tos na cara. Foi pena que já não pudesses ouvir as suas gargalhadas ao longo do corredor.
Onde me espera.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Nessas tardes de Agosto, quando termina o turno da fábrica, não há nada para fazer; quando muito, pode-se ir até à estrada de Forks Falls para ouvir as conversas dos presos, de grilhetas nos tornozelos.

Carson McCullers em Balada do Café Triste

Legenda: fotograma do filme «I Am A Fugitive From Chain Chang» de Mervyn Leroy.

AGORA TODAS AS MINHAS REFEIÇÕES SERÃO ASSIM


Fechara-se a noite quando Ricardo Reis saiu. Jantou na Rua dos Correeiros, num restaurante de sobreloja, de tecto baixo, sozinho entre homens que estavam sozinhos, quem seriam, que vidas teriam, atraídos porquê a este lugar, mastigando o bacalhau ou a pescada cozida, o bife com batatas, quase todos servindo-se de vinho tinto, mais compostos de traje que de modos, batendo no copo para chamar o criado, palitando com esforço e volúpia dente por dente ou retirando com a pinça formada pelos dedos polegar e indicador o filamento, a fibra renitente, um que outro arrotando, folgando o cinto, desabotoando o colete, aliviando os suspensórios. Ricardo Reis pensou, Agora todas as minhas refeições serão assim, este barulho de talheres, estas vozes de criados dizendo para dentro Uma sopa, ou Meia de chocos, maneira abreviada de encomendar meia porção, 133 estas vozes são baças, a atmosfera lúgubre, no prato frio a gordura coalha, não foi ainda levantada a mesa ao lado, há nódoas de vinho na toalha, restos de pão, um cigarro mal apagado, ah como é diferente a vida no Hotel Bragança, mesmo não sendo de primeira classe, Ricardo Reis sente uma violenta saudade de Ramón, a quem não obstante tornará a ver no dia seguinte, hoje é quinta-feira, só sairá no sábado. Sabe porém Ricardo Reis o que saudades destas costumam valer, tudo vai é dos hábitos, o hábito que se perde, o hábito que se ganha, está há tão pouco tempo em Lisboa, menos de três meses, e já o Rio de Janeiro lhe parece uma lembrança de um passado antigo, talvez doutra vida, não a sua, outra das inúmeras, e, assim pensando, admite que a esta mesma hora esteja Ricardo Reis jantando também no Porto, ou no Rio de Janeiro almoçando, senão em qualquer outro lugar da terra, se a dispersão foi tão longe. Em todo o dia não chovera, pôde fazer as suas compras com todo o sossego, sossegadamente está agora regressando ao hotel, quando lá chegar dirá a Salvador que sai no sábado, nada mais simples, saio no sábado, mas sente-se como o adolescente a quem, por se recusar o pai a dar-lhe a chave da casa, ousa tomá-la por suas mãos, fiando-se da força que costumam ter os factos consumados.

TRUMPALHADAS


Capa da revista Time de ontem.

LISBOA


Digo:
“Lisboa”
Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão noturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas –
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construida ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
– Digo para ver

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 19 de julho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Olho por olho, dente por dente, diz-se no Antigo. No Novo, manda-se amar o nosso inimigo e dar a outra face. Contam-se pelos dedos de uma mão os que o fizeram, e a própria Igreja sustentou, durante séculos, as «guerras justas», nelas incluindo as que hoje se consideram as mais injustas. Não faltaram, nem faltam, textos sagrados a fundamentar esses conceitos, e quem invoca o «quem com ferro mata com ferro morre» ouve como resposta «não vim trazer a paz, mas a guerra».

João Bénard da Costa no 2º volume de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras.

E AÍ PARECE QUE SOU SUFICIENTEMENTE BOM


Manuel da Fonseca, num dos seus poemas, deixou lavrado que os místicos andaram pelos séculos construindo noites geladas solidões.
Toda uma vida, se bem que haja breves lampejos de alguma felicidade, Mário-Henrique Leiria transportou aos ombros do seu débil corpo, geladas solidões que nem os amigos, os cigarros, os seus fiéis leitores, o gin, conseguiram aliviar.

Desde Carcavelos, em 17 de Dezembro de 1974 – Ah! o Natal! sempre o Natal - , corta a direito:

Acabo de receber a tua carta. O teu cartão. O teu cheque. Não sei bem que te dizer. Cartas tuas, todos os dias, se quiseres. Cartões também. Cheques, querida menina, faz-me o favor: não repitas. Olha que não é ingratidão, não é mesmo. Estou comovido e impressionado. Mas, Isabel, tenho um vício e um orgulho só aceito aquilo que obtenho por briga, seja ela qual for. Aceito o teu amor, todo, Obtive-o. É o que quero de ti. O teu dinheiro não posso. É teu e és tu quem o obtém. Percebes? Creio que sim. E agora, obrigado mesmo pelo cheque. Aliás veio a calhar, parece que a Jovília tem que ser operada em breve e sabes como são as coisas neste excelso país.
Eu aqui, desiludido (aliás já é costume), Estou retraído, à espera. Sabes bem que as coisas se fazem até ao fim, ou não se fazem. E por cá tudo vai pelo meio termo. Não aceito um socialismo que o não é, tal como nunca aceitei a tal democracia com escravos e tudo. Talvez eu seja radical demais (ou excessivamente honesto) para entrar no jogo. De jogos, só gosto de poker e aí parece que sou furiosamente bom. Mas só poker, mais nada.
Demiti-me de tudo. Estou só- Aliás, sempre estive. Agora dizem que sou anarquista, inimigo do Estado. Talvez seja, não sei. O que eu não sou, com certeza, é oportunista.
Bem, deixemo-nos disto.
Cá por casa há frio. O malvado Vodka morde em toda a gente. Ainda bem.
A mãe, muito velhinha e cansada.
A Jovília continua com análise, biópsias, radiografias. Tem dores e chateia toda a gente. Deve ter que ser operada, não sei a quê. Nem estou interessado em saber.
Eu, dores de cabeça de manhã à noite, reumatismo excelente e incapaz de escrever. No entanto tenho mesmo de escrever as habituais besteiras para os jornais. Questão de dinheiro, mais nada.

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Na Nota Preliminar que Mécia, mulher de Jorge de Sena, escreveu para os 80 Poemas, conta que este projecto da tradução dos poemas de EmilyDickinson, era um velho sonho de Sena.

Em 1962 destinavam-se a ser publicados em separata para a revista Bandarra, organizada por Egito Gonçalves, mas nunca foram publicados.

Em 1967, com um acréscimo de poemas traduzidos, foi enviado à Portugália Editora «onde não teve melhor sorte».

Em Julho de 1968 os direitos autorais foram cedidos à Editorial Inova mas tudo ficou no esquecimento.

Em Janeiro de 1978 as Edições 70 prontificaram-se a publicar o livro, mas o poeta viria a morrer em Junho desse mesmo ano.

Só em Outubro de 2010 os 80 Poemas de Emily Dickinson, traduzidos por Jorge de Sena, teriam a sua publicação incluídos nas Obras Completas que a Guimarães passou a publicar, tarefa a que a Editora se dedicou sem grande carinho e entusiasmo. Diga-se.

Que o projecto era muito querido a Jorge Sena, provam-no as muitas referências feitas a essas traduções que se podem ler na Correspondência que trocou com Eugénio de Andrade., ao todo 22 notas.

A Inova chegou a andar às voltas com os poemas de Dickinson, juntamente com a tradução dos poemas de Cavafy. Estes saíram, os de Dickinson não tiveram essa sorte. E como Sena tereia ficado feliz com essa publicação.

Em 3 de Junho de 1969, Sena escrevia a Eugénio:

«Mas estou francamente inquieto até hoje não recebi, de ti ou da Inova, notícia de ter chegado a Emily Dickinson, que mandei pouco antes do Cavafy e nem a respeito deste ou dela recebi da Inova qualquer comunicação. Que se passa ou não se passa?»

Em 22 de Dezembro de 1970, mais um lamento:

«E era preciso que essa Inova se lembrasse da minha pobre Emily Dickinson que há tantos anos sempre se vê editorialmente preterida.»