Tu leitor julgavas que ali debaixo do alpendre o meu olhar estava
apontado para os ponteiros tu leitor julgavas que ali debaixo do
alpendre o meu olhar estava apontado para os ponteiros recortados como
alabardas de um redondo relógio de velha estação,
no vão esforço de fazê-los andar para trás, a percorrer em sentido
contrário o cemitério das horas passadas jacentes exangues no seu panteão
circular. mas
quem te diz que os números do relógio não se debruçam de janelinhas
rectangulares e eu não vejo cada minuto cair-me em cima de repente como a
lâmina de uma gui-
lhotina? Seja como for, o resultado não mudaria muito: mesmo avançando
num mundo todo polido e escorregadio a minha mão contraída no pequeno leme da
mala de rodízios não deixaria de exprimir uma recusa interior, como se aquela
ligeira bagagem constituísse para mim um peso ingrato e extenuante.
Alguma coisa me deve ter corrido mal: um engano, um atraso, uma ligação
perdida; talvez à chegada eu devesse encontrar um contacto, tendo provavelmente
algo a ver com esta mala que tanto parece preocupar-me, não sendo claro se por
medo de perdê-la se porque nunca mais consigo livrar-me dela. O que parece bem
certo é que não é uma bagagem qualquer, que se possa guardar no depósito das
bagagens ou fingir que se esquece na sala de espera. Não vale a pena olhar para
o relógio; se veio alguém esperar-me, já foi embora há um bom bocado; não vale
a pena atormentar-me na ânsia de fazer andar para trás os relógios e os
calendários na esperança de voltar aio momento anterior àquele em que aconteceu
alguma coisa que não devia acontecer. Se nesta estação eu devia encontrar
alguém, que se calhar não tinha nada a ver com esta estação mas que só devesse
descer de um comboio e voltar a partir noutro comboio, tal como deveria fazer
eu, e um dos dois devia entregar alguma coisa ao outro, por exemplo eu devia
entregar ao outro esta mala de rodízios que afinal focou comigo e me queima as
mãos, então a única coisa a fazer é tentar restabelecer o contacto perdido.
Italo Calvino em Se Numa Noite de Inverno Um Viajante
1 comentário:
Belo texto.
Aida
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