De que terra é este
homem? De que serra veio? De que vales fez caminho para chegar a Lisboa?
Carregador de
grades, que, de madrugada, vão cheias e às costas, para o mercado, e que, na
quebra da tarde, vão vazias, mas ainda às suas costas, para a camioneta de
carga, ele, será sempre e até à segunda geração, um corpo que abriu, com os
ombros do trabalho, as portas da capital.
Como vive? Onde
mora? Que transportes usa? Que ruas percorre e conhece?
Haverá alguém,
neste desgoverno que temos, a pensar nele mais como «beneficiário» do que como
«contribuinte»?
Oração é quando a
algum homem de boa vida aparece o Senhor Deus ou algum Anjo e lhe diz as cousas
que há-de fazer ou de que se deve de guardar, ele ou outra pessoa.
Visão é quando o
homem aquelo que viu em sonhos vê depois claramente por vista: assim como o
sonho que viu Faraó das vacas e das espigas.
Sonho é quando
homem vê alguma coisa a qual por si não pode declarar nem saber, e há mester
quem lho interprete, como foi o sonho do copeiro de el-rei Faraó.
(Trecho retirado de um trecho da Crónica de D.
João I).
Quando
foi publicado o 1º volume dos Cadernos de Lanzarote não fiquei muito
entusiasmado com a ideia. Mas no fundo dos fundos sempre era escrita e trabalho
de José Saramago, de quem nunca se espera que nos ofereça fruta bichada, pelo
que não podia ficar indiferente.
Na
página 54 do 4º volume dos Cadernos, Saramago teve o cuidado de deixar uma
indicação:
«Na verdade, terá de
vir procurar-me nestas crónicas quem verdadeiramente me quiser conhecer.»
Passados todos estes anos
e deixando de lado as invejas incompreensões de seus pares, colocando à margem
muita prosa datada dos Cadernos, terei que dizer que muito aprendi com a leitura
dos Cadernos.
Um interessante livro de
Fernando Gómez Aguilera, José Saramago. O Pássaro que Pia Pousado no Rinoceronte, acabado de ler, contém um capítulo
que intitulou «A figura do Caminhante»,
a propósito dos 3 primeiros volumes dos Cadernos de Lanzarote.
Hoje, debruço-me no começo
dessa prosa:
«A figura do
caminhante, que avança sobre a cinza em direcção a um fundo de montanhas,
anuncia um homem de passo firme, esclarecido. No entanto, o seu aspecto não é o
de quem está habituado a lidar com a terra áspera e com o caminhar. Então o que
procura ele na sua deslocação? Dirige-se para algum destino em concreto?
Espera-o porventura uma mulher a quem deseje abraçar, contar uma fábula ou partilhar
uma inquietação?
Parece movido por uma vontade enérgica, amparado na porosa tela da sua memória
ou no anelo de uma terra flamante para os seus olhos. À sua volta, a região
desenha-se negra, inóspita e vazia, exceto de calma, de beleza e de luz. É um
homem ágil, de aparência jovem, apesar da idade. Poder-se-ia tratar de alguém
que caba de escrever num caderno palavras dilacerantes na sua ternura, por
exemplo: «Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente
é isto a velhice.»
(Diário II-1994, 7
de Julho) Tratar-se-á porventura de um passeante que avança no silêncio da sua
conversa, entre o caudal das palavras escritas e as palavras por dizer? Um
caminhante que vive nos livros e com eles modela a respiração dos seus dias e
sonhou com o cume das colinas a que sobe, agarrado à memória de uma criança
especialista em rios, ribeiras e olivais:
«Subi ontem a
Montaña Blanca. O alpinista do conto tinha razão: não há nenhum motivo sério
para subir às montanhas, salvo o facto de elas estarem ali.
Desde que nos
instalámos em Lanzarote que eu andava a dizer a Pilar que havia de subir todos
estes montes que temos por trás da casa, e ontem, para começar, fui-me atrever
com o mais alto deles. É certo que são apenas seiscentos metros acima do nível
do mar, e, na vertical, a partir do sopé, serão aí uns quatrocentos, ou nem
isso, mas este Hillary já não é criança nenhuma, embora ainda muito capaz de
suprir pela vontade o que lhe for faltando de forças, pois em verdade não creio
que sejam tantos os que, com esta idade, se arriscassem, sozinhos, a uma
ascensão que requer, pelo menos, umas pernas firmes e um coração que não
desista.»
(Diário I-1993, 9
de maio)
Lembrava-me desta entrada nos Cadernos, de que agora tanto
gostei de reler e parti do princípio de que estaria sublinhada. Não está e deveria
estar!
Se eu tivesse qualquer dúvida, ficaria a saber da
importância que existe em ler os autores de que tanto gostamos, mais de uma vez.
Já agora, acrescento a parte final da entrada que Gómez
Aguilera não cita:
«A descida, feita
pela parte da montanha que dá para San Bartolomé, foi trabalhosa, bem mais perigosa
do que a subida, pois o risco de resvalar era constante. Quando, enfim, cheguei
ao vale e à estrada que vai para Tías, as tais firmes pernas minhas, com os
músculos endurecidos por um esforço para que não tinham sido preparados, mais
pareciam trambolhos que pernas. Ainda tive de caminhar uns quatro quilómetros
para chegar a casa. Entre ir volver, tinham-se passado três horas. Lembro-me de haver pensado, enquanto subia: «Se caio e aui me mato, acabou-se, não farei mais livros.» Não liguyei ao aviso. A única coisa relamente importante que tinha para fazer naquele momento, era chegar lá acima.»
Interessante o pormenor:
«Se caio e aqui me
mato, acabou-se, não farei mais livros.»
Legenda: Selo comemorativo dos Correios espanhóis pelos
100 anos do nascimento de José Saramago.
Hoje, à mistura com um Bacalhau
à Zé do Pipo, fala-se do Cândido Mota e a talhe de foice vem aquele EP do
Crispian St. Peters que tem o The Pied
Piper e ainda me lembro das palavras mágicas, as primeiras espiras a
rodarem e a voz única do Cândido Mota a recitar: «sigam-me que eu sou o tocador
da flauta mágica».
E num destes domingos,
porque ao domingo, seguindo uma tradição, que trouxe da casa dos meus pais, há
sempre um assado no forno, irei tentar o teu Bacalhau.
A Biblioteca da Casa tem alguns livros de comeres e
beberes.
Hoje trazemos uma colectânea de gente portuguesa,
quarenta ao todo, reunida por Manuel Guimarães.
Escolhemos a receita proposta pelo Cândido Mota, uma
admirável voz de um programa de rádio que marcou uma geração: o Em Órbita.
O Cândido escolheu «Bacalhau è Zé do Pipo» e como escreve
Manuel Guimarães: um prato frequente nas
décadas de sessenta e setenta nos bons restaurantes de Lisboa e hoje
substituída por autênticas anedotas gastronómicas, mesmo em casa com
responsabilidades e tradições no mundo da comida.
BACALHAU À ZÉ DO PIPO
Tempo de preparação: 1 hora
Ingredientes para 4 pessoas
4 postas de bacalhau do lombo
1 l de leite
4 cebolas médias
1 dl de azeite
1 folha de louro
Sal q.b.
Pimenta q.b.
Noz-noscada q.b.
Manteiga q.b.
1 tijela de maionese espessa
1 kg de batata em puré
Azeitonas q.b.
E é assim que o Cãndido Mota faz o bacalhau à Zé do Pipo:
Ora o bom «Bacalhau
à Zé do Pipo» não é compatível com a mentalidade do comer em pé ou com as pressas excessivas de muitos que,
na maior parte das vezes, não sabem sequer por que se apressam.
Escrevi milhares de
versos
para esquecer. Amei algumas mulheres
para lembrar. Agora já posso dizer
o som em carne viva.
A cidade assemelha-se a um acampamento
abandonado no deserto. Os nómadas
partiram nos seus camelos, com provisão
de tâmaras e água.
Há restos de detritos, sinais de trânsito,
folhas arrancadas a revistas pornográficas,
ao sabor do vento, por entre pétalas sêcas.
Há resíduos de sítios onde estive contigo,
fragmentos de versos de vidro, tudo
muito nítido, anotado, vincado a oiro.
A discussão vai
larga e degenerada, já principia a cansar a Câmara, e há muito que enfastiou a
Nação. E contudo, eu espero dela um grande fruto, uma utilidade imensa,
inapreciável, com que não só a Câmara mas toda a Nação há-de ganhar muito: - a
prova indirecta, o testemunho irrefragável, a convicção unânime de que não era
este o modo, de que não era certamente este o estilo de discutir a resposta a
um discurso da Coroa.
A discussão vai
degenerada, digo; porque solene e gravemente começada sobre o primeiro
parágrafo do projecto, e parecendo querer estender-se à amplíssima generalidade
dele, afectando entrar nesse vasto, importante e imenso assunto, toda desandou,
em viciosíssimo circulo, à roda de uma palavra; para se contrair, por fim, no
mais pequeno dos objectos, no mais insignificante, no mais baixo; o das
acusações e recriminações pessoais, o das injúrias, dos convícios, dos apodos;
- palavras que deveriam riscar-se do dicionário de todas as línguas que têm a
honra de ser faladas num parlamento.
Nada tamanho e tão
augusto como este primeiro acto de comunhão em sentimentos e vontade, que
anualmente se celebra entre o Povo e o Soberano! Esta primeira e solene
consultação em que o Chefe da Nação por sua boca, a Nação pela dos seus
representantes, mutuamente se vêm saudar ao Foro da Liberdade, e, postos em
comum as suas observações, os seus pensamentos, os seus projectos, os seus
meios, pausados acordam no mais seguro e eficaz para se promover a felicidade
da república !
Nada tamanho,
Senhores, nada tão sublime! - E nada tão pequeno, nada tão mesquinho, nada tão
miserável, tão indigno desta Câmara como a maneira por que o estamos
celebrando!
Ainda mal! é
verdade: é triste verdade que, junto com poucos argumentos, os ditérios, sós,
os vitupérios sós parecem querer usurpar o lugar de todas as reflexões,
substituir-se a todas as razões, darem-se por motivos suficientes de tudo, e
negar-se tudo, provar-se tudo com eles! - A que triste campo nos trazem a
pelejar
E todavia,
Senhores, eu venho a ele ... venho, forçado, violentado, a despeito meu: por que
já não basta o silêncio do desprezo quando se vê a vaidade presunçosa
interpretá-lo por confissão ou fraqueza. Venho a esse campo para que me
emprazaram obrigado, – não a lutar com as mesmas armas (tenho vergonha, tenho
nojo delas!) mas a repelir honesta, leal e cortesmente, mas fortemente, os
golpes atraiçoados com que quiseram ferir aos meus amigos do centro no que eles
e eu temos mais caro e precioso, a nossa lealdade, a nossa constância política,
a invariabilidade dos nossos princípios, a nossa inalterável e inabalável
adesão à liberdade constitucional, à monarquia representativa, pela qual uns a
fazenda, outros a saúde temos sacrificado, não poucos exposto a vida muitas
vezes.
Do discurso pronunciado no dia 8 de Fevereiro de 1940
«Imaginemo-nos Loretta Bell, a mulher do Xerife Ed
Tom Bell, o protagonista de No Country for Old Men (Cormac
McCarthy, Este País Não É Para Velhos, tradução Paulo Faria, Relógio
D’Água, 2007). Loretta, o porto seguro de Bell: “Leio os jornais todas as
manhãs. Principalmente, acho eu, para tentar perceber a tempestade que é bem
capaz de vir aí a caminho. (…) As coisas cada vez pioram mais. Aqui há uns
tempos dois rapazes encontraram-se por acaso, um era da Califórnia e o outro
era da Florida. Encontraram-se algures a meio caminho. E vai daí juntaram-se os
dois e começaram a viajar pelo país, a matar pessoas. Já me esqueci de quantas
mataram. Pois bem, quais são as probabilidades de acontecer uma coisa destas?
Aqueles dois nunca se tinham visto um ao outro. Não pode haver assim tantos.
Não me parece que haja, pelo menos. Bom, não sabemos. No outro dia, por estas
bandas, uma mulher pegou no filho bebé e meteu-o numa trituradora de lixo. Quem
havia de pensar numa coisa assim? A minha mulher [Loretta] já não lê jornais.
Faz bem, provavelmente. Na maior parte dos casos, ela é que tem razão.»
Qualquer camponês
da «charneca» alentejana, ou pastor da meseta ibérica, é mais culto,
etnograficamente falando, do que esses dândis para quem a cultura não passa de
uma atitude de contemplação e fruição sem contrapartida: uma desnaturação. Para
me explicar melhor, pois já vejo uma vertigem de espanto nos seus olhos: Vale
mais um hálito de humidade espalhado por toda essa campina, do que uma
inundação no meu quintal. E está visto, as pessoas presentes estão
rigorosamente excluídas.
A avó materna deixou de ir à missa dominical quando as
pernas não lhe permitiram caminhar mais, vivia rodeada de uma família anti-clerical
e volta e meia lembrava que não deveríamos invocar o santo nome de Deus em vão.
Seria o que a avó materna diria ao Júlio Montenegro
quando ontem, em congresso partidário, abriu os braços e gritou à populaça:
Deus nos livre de
ter um radical à frente do Governo.
Em quase 50 anos, apenas o presidente da Câmara Municipal de Lisboa Carlos
Moedas, mais os acólitos que conseguiu arregimentar, teve o enorme desejo de assobiar
a passagem do 25 de Novembro.
Não conhecem a história, não leram os livros.
Mesmo os que conhecem a história e leram livros, não têm
uma ideia clara sobre aquele dia de quase Inverno.
Nunca ninguém, tirando uns quaisquer fogachos, comemorou o 28 de Setembro, o 11 de
Março, meros episódios de um caminhar, após Abril, da nossas recente História.
Este nicho Música pela Manhã acontece quando nos
aparece algo que diz respeito a um autor, a um cantor, a uma data.
Inevitavelmente hoje teria
de ser o tempo dessa canção do José Mário Branco.
O tempo em que, como
escreveu o jornalista Rodrigues da Silva «algures, numa dobra da história,
alguma coisa falhou, algum erro se cometeu. Seria altura de saber, onde, como,
porquê. Mas talvez seja demasiado tarde…»
O dia que Maria Velho da
Costa determinou. ESTE DIA NÃO!
Também um passeio
ligeiro por afirmações deixadas em livros,
em artigos de jornal:
1.
Varela Gomes:
«Mas não havia nada a fazer. A grande decisão
estava tomada. Otelo Saraiva de Carvalho obedecia à convocação do
general Costa Gomes, largando os “paras” à sua sorte. O estratega do 25 de
Abril de 1974 abandonava vergonhosamente o seu posto de comando em 25 de
Novembro de 1975. Na hora do aperto, fugia de calças na mão, à procura do
refúgio protector.
Deveriam ser cerca das 15,00 horas quando o general
graduado Otelo Saraiva de Carvalho saiu do Copcon… e da revolução.(1)
Estamos no fim da Revolução. E porventura não
tardará aí o inferno que ninguém quer.
3.
Mário-Henrique Leiria:
«Porque foi isto assim possível? propomos a explicação
de que houve, como "originalidade" típica, muito improviso no
processo revolucionário, que esqueceu a sua defesa, criando a alastrando a
angústia na pequena burguesia, camada significativa na sociedade portuguesa, a
que até muitos trabalhadores as piram por força das motivações que o
obscurantismo fascista teve longo tempo para semear.
Angústia semelhante à que agora ressurge com o agravamento das condições de
vida, a subida arrogante da reacção, a incerteza do futuro que tem que ser
construído de novo.
O Povo terá pois que teimar para que respeitem a sua vontade de acabar com a
exploração do homem trabalhador pelo homem esperto. Para que as condições de
vida sirvam as classes desfavorecidas. Para que acabem as perseguições aos que
olham o futuro sem medo da mudança. parq ue a justiça social deixe de ser uma
miragem evangélica no mundo dos mortos. Para quem produz trabalhando, exerça o
poder, Para que sejamos verdadeiramente um país Democrático.»
4.
Maria Eugénia Varela Gomes:
«O 25 de Novembro é o fim da revolução. Acabou para
mim… Uma coisa que eu não suportava era ouvir dizer que a revolução continuava
depois do 25 de Novembro. Isso não. Não se engana o povo. Porque eu acho que é
uma coisa inadmissível enganar o povo. E se algumas vezes me irritei com o
Partido Comunista uma das razões foi essa. Eu percebia qual era a intenção, mas
achava que era um desrespeito pelas pessoas. Era preciso não deixar as pessoas
desanimar… é verdade… mas também dizer-lhes que a revolução continuava…
Quando era evidente, depois do 25 de Novembro, que
tinha acabado a revolução.»
5.
António Rego Chaves, anos mais tarde, no Diário
de Noticias:
«Tenho uma imensa saudade dos antifascistas de 24 de Abril de 1974. Era,
aparentemente, gente boa, pura, desinteressada em obter ganhos pessoais,
generosa. Depois, apenas um dia depois, o minúsculo vírus não identificado que,
afinal de contas, tantos deles já traziam adormecido no cérebro e lhe roía as
entranhas pôs-se a crescer, a crescer desmesuradamente, sem eira nem beira,
como um polvo, uma maldição, até nos revelar o seu horrendo segredo: o oportunismo,
a ganância, a sede de vingança, nem que fosse um pequeno pontapé nas canelas do
“chefe”davéspera, do vizinho do lado, do gato comunitário, vulgo vadio.»
6.
«E aí volto àquela noite, que volto a não ter pejo de achar que não é para celebrar. Alguns anos volvidos, pergunto-me à esquerda também moderada, terá sido um acto legítimo a interrupção do galhofeiramente nomeado PREC? Terá valido a pena, a não conciliação dentro daquele terreno, que, fosse para onde fosse, não deixava de galvanizar grandes massas de trabalhadores, muitos intelectuais, muita gente honesta hoje marginalizada? Porque não é mais possível, na memória comovida ou irritada de todos nós, dizer que o que estava sendo era instrumentalizado por Moscovo.
Maria Velho da Costa
7.
Diana Andringa:
Quem partiu o espelho dos sorrisos de Abril?
8.
Simone Beauvoir, algures no tempo:
«O mais terrível dos sentimentos é o de ter a
esperança perdida.
O 25 de Novembro foi um momento
fracturante e eu entendo que os momentos fracturantes não se comemoram;
recordam-se e recordam-se apenas para reflectir sobre eles.
José Saramago. O
Pássaro que Pia Pousado no Rinoceronte
Fernando Gómez Aguilera
Prólogo:Pilar del Río
Prefácio: Fernando Gómez Aguilera
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Porto Editora, Lisboa, Outubro de 2022
José Saramago
começou a sentir-se atraído pela elaboração de diários a partir da sua mudança
para Lanzarote no princípio de 1993, se bem que se conservem no seu arquivo
inúmeras e minuciosas agendas que remontam aos anos setenta, nas quais anotava
sucintamente tarefas, encontros, compromissos, citações, reuniões, atividade
política no PCP… No entanto, de 1993 a 1998, completou em cada ano, na ilha dos
vulcões, a narrativa da sua quotidianidade destinada a ser publicada, uma
modalidade que ganhou raízes ao longo do século XIX e encontrou impulso com a
difusão do Diário Íntimo, do filósofo
suíço Henri- Frédéric Amiel, constituído por 17000 páginas, em doze volumes
escritas entre 1839 e 1881, com o propósito de serem impressas.
Qual? Serão
círculos concêntricos ou espirais sustidas no corte que impede a tentação do
infinito? – Trabalhadas à mão reverente naquela estrada miraculosa da
inteligência/sensibilidade até à execução do visível? Há sempre uma interrupção,
uma paragem (aleatória) do olhar na linha subtil de um rosto perplexo, qual
rosa solta de si, voltada para o nosso lado de interlocutor, inventado o mundo
maravilhoso da sobrevivência ao tempo do êxtase - Pedaços de epopeias, dos
cantos dos grandes livros intemporais, mas que marcam os ciclos da nossa
paixão. – Singular de cada plural enganosamente referido.
Como escolher o
mais, o mais inquietante, o melhor, o mais próximo, o mais doloroso? À sorte
aponta-se um, vários, todos. Sem certezas nem porquês.
Era
pouco antes do nascer do dia e quando os outros chegaram mostravam-se
alvoroçados.
«Amigo,
há qualquer coisa, há qualquer coisa!»
E
lembrei-me que às nove horas, quando entrasse na Redacção o telex voltaria a
contar o golpe e que no prontuário encontraria o título: O GOLPE ESTÁ
COMPLETAMENTE DOMINADO.
Mas
tudo se desvaneceu quando Bosco, rodando os botões da telefonia conseguiu
sintonizar:
«…
conforme tem estado a ser transmitido, as forças armadas puseram em marcha. Esta
madrugada, uma série de acções com vista à libertação do país do regime que
desde há muito o oprimia…»
Abraçámo-nos
em silêncio, reconhecíamos que a tarefa continuava a ser dura e preparámo-nos
para participar porque subitamente acreditávamos numa notícia.
Se vossas
excelências não se importam
excelentíssimas entidades superiores
eu hoje
que é quinta-feira
gostava de ter razão.
Sei perfeitamente que morrerei um dia
e que só na minha rua o vão saber.
Por isso se vossas excelências realmente não se importam
eu hoje, que é quinta-feira
precisava muito de ter razão.
De sete dias na semana pedir um para viver
não é muito, convenhamos.
A não ser.....
Ah! É verdade, a não ser...
A primeira vez que apanhei a escrita do Adelino Tavares
da Silva foi no Cinéfilo, excelente
revista, dirigida por Fernando Lopes que se publicou entre 4 de Janeiro de 1973
e 22 de Julho de 1974 e tento um boneco tirado do volume encadernado de todos
os Cinéfilos que consta da Biblioteca da Casa.
Depois encontrei-o no primeiro livro que a & ETC
publica, Coisas, com um texto em 18
pontos a que chamou Crucificolagem e
aqui repruduzo os dois últimos pontos do texto:
Mais tarde dou com os Cartazes
que publicou em O Diário.
Numa limpeza de
caixas e caixinhas encontro um envelope, com alguns desses cartazes de O Diário que teve vida de 10 de Janeiro de
1976 até 1990, o jornal que o José Saramago, quando ficou desempregado do Diário de Notícias, chegou a admitir que
fosse convidado pelo Partido para nele colaborar, que não veio a acontecer e
que o obrigou a procurar outros horizontes de vida que foram desembocar nesse
grande livro que dá pelo nome de Levantados
do Chão e depois a toda uma obra que culminará no Nobel da Literatura.
Sobre o Adelino tentei encontrar algo mais que o vulgar
nascer e morrer mas a única referência com interesse é uma história do Adelino contada
pelo Mário Mesquita publicada no Público de
1 de Setembro de 2012:
«…a reportagem de
Adelino Tavares da Silva da recepção no Palácio de Queluz à Rainha Isabel II,
que se resumia a uma foto-legenda. A imagem era do quarto onde o casal real
iria pernoitar. As palavras muito sucintas: "Aspecto dos aposentos reais
no Palácio de Queluz, onde Sua Majestade Isabel II vai encontrar-se hoje à
noite com o Príncipe de Edimburgo, seu marido, após quase um ano de
separação". Com efeito, o Príncipe Filipe reencontrava a rainha após
longos meses de viagem pela Comunidade Britânica. A censura, no dia seguinte,
chamou "à pedra" o Diário Ilustrado.»
Resta-me copiar o que o Vitor Silva Tavares desenhou na
& ETC quando o Adelino por lá surgiu a colaborar:
Gosto destes Cartazes de O Diário guardados em envelope amarelecido
pelo tempo e vou copiá-los por aqui.
Costumes, gentes, um país outro que ainda encontramos por aí,
cartazes datados mas muito bem escritos. Pede-se desculpa pela má qualidade das
reproduções. Da imagem mais não posso fazer, do texto farei transcrição.
E é este o 1º Cartaz do Adelino que se publica:
ÀS VEZES SÓ MUITO TARDE SE ACORDA
«Eis o que muita
gente pensa. Eis o que muitos fazem, julgando que «não tocar nas coisas é
melhorá-las». Deitam-se a dormir e, depois, quando acordam, estão hirtos,
gastos, entorpecidos, anquilosados.
Mais tarde, só
muito mais tarde, às vezes, é que percebem o logro. Resistir é estar de pé e
atento. Vencer é não se deixar ficar à espera do que, apenas, vem dentro do
sonho, porque é mesmo pesadelo.
É útil criar boas
legendas, mas o importante, claro, é fazer delas uma bandeira, que se leva ao
alto e não de rastos. É assim em tudo.»
Ainda a morte do poeta Manuel Gusmão ocorrida no dia 9 de
Novembro.
Um outro poeta, Luís Filipe Castro Mendes: lamentando, nos dias que correm, a
não presença física de Manuel Gusmão:
«Grande poeta, com poemas que iluminarão sempre os nossos
caminhos, ele foi também um crítico e ensaísta de primeira água, um professor
que marcou gerações de jovens com o seu saber e o seu estímulo e uma voz culta
e serena, sem nunca deixar de estar aliada às forças de progresso e
emancipação.
Perdemos um dos maiores da nossa geração!»
E mais um poema de Manuel Gusmão:
Revolução orbital:
vai-se a rosa transformando
na coisa múltipla, amante e amada, na acção
que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens,
estações dos dias e das noites, dos anos da história.
Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz
desenham. E a rosa é uma hélice que vibra
no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões,
do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos
que se respondem: como um coração que deflagra
a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces
e o chão sobre que danças.
A selecção de
fotografias incluídas neste livro é o resultado de cinco meses vividos
Na estrada Nacional
118, ao longo dos seus 194 quilómetros, que se estendem de Rio Frio a Alpalhão.
Decidi-me por esta estrada por dividir o país em partes quase iguais,
representando no seu percurso disparidades tão acentuadas quanto a sua paisagem,
as pessoas e os respectivos hábitos que é a própria estrada a condicionar ou a
desenvolver.
No decursos desses
cinco meses confrontei a realidade com a ideia que inicialmente me movera
escolher, de forma arbitrária e meramente operacional, um suporte para um
trabalho que olhasse sincera e conscientemente para o país. Que além de aceitar
as suas diferenças, também as entendesse como razão de ser desta estrada e,
consequentemente, deste livro.
Assim, fotografei a
cores, com uma objectiva normal, sempre a partir da berma da estrada ou de
edifícios que a bordejavam, ordenando, clara e directamente, as fronteiras do
olhar, dentro das quais i inexplicado encontrasse espaço para se expor.
É deste equilíbrio
de forças, desta justaposição. Que provirá uma catarse, em insuficientemente e
tardia, mas indispensável para a obtenção de uma redenção. Uma redenção moral.
Um recorte do semanário de que não foi guardada a data,
sabe-se pelo texto que foi um qualquer Agosto do tempo em que o efémero semanário O Ponto foi publicado.
Um excelente e diversificado naipe de jornalistas, quase
nata-da-nata, da classe.
Todas as semanas, figura de proa da nau, eram as
entrevistas do Baptista-Bastos que, em Abril de 1984, aRelógio d’Água publicou
em livro.
Do prefácio do Baptista-Bastos:
«Estas entrevistas
(e mais cinquenta) foram publicadas no semanário O Ponto, nascido de um singelo
sonho de liberdade e acalentado por um grupo de jornalistas que de seu só
possuía a honra jamais hipotecada e a ingénua convicção que as palavras (sempre
se recusa, sempre de protesto, sempre exaltantes) poderiam ser integradas na
grande voz colectiva e aceites pelas minorias sem voz. O Ponto foi um jornal
arrebatadamente jovem, truculento, vitalizante, diferente – sobretudo porque
admitiu, compreendeu e defendeu o direito à diferença»
Será das alterações climáticas, até a silly
season mudou de calendário.
Como não recordar com saudade as famosas revelações de
Lili Caneças feitas em Julho de 2011 ao jornalista André Rito durante uma
conversa que terminava com o inesquecível diálogo: “Obrigado, Lili, foi um
prazer”, ao que ela respondia: “Obrigada, eu. Não se esqueça de pagar o meu
sumo”. Ou a carta de alforria assinada por Assunção Cristas no mesmo ano, uma
iniciativa de nome “Ar Cool” que libertava os funcionários do Ministério da
Agricultura e etc. das grilhetas da gravata. Ou o “brincar aos pobrezinhos na
Comporta”, gosto confessado por Cristina Espírito Santo no Verão de 2013 e pelo
qual pediria desculpa, ainda as desculpas não estavam tão baratas como hoje.
Dito isto, acrescente-se que no Evereste do disparate
estival mantém-se a transformação do Algarve em ALLgarve, ideia que terá
surgido em 2007 a Manuel Pinho, então ministro, hoje preso domiciliário numa
quinta de três hectares perto de Braga (com o senão do raio coberto pela
pulseira electrónica o impedir de dar um pulo à vinha ou à piscina), durante
uma noite de insónia em que a visão de charters a abarrotar de
turistas culturais a invadir o Sul – como o próprio adjectivo indica, vindos
não pelas praias ou sequer pelo peixe grelhado, mas para ouvirem declamar
poemas de Nuno Júdice ou ler excertos de Lídia Jorge – o leva a telefonar de
imediato ao publicitário Pedro Bidarra, que aplaude ruidosamente, sem
consideração pelos vizinhos dado o adiantado da hora, o
“glamour aspiracional” do trocadilho, traduzido depois nuns cartazes e
numas cenas que nos ficaram pela bagatela de nove milhões de euros.
«Não teve a vida
que merecia.» Dir-se-ia que a vida de Baudelaire foi uma magnífica ilustração
desta consoladora máxima. Não merecia, sem dúvida, aquela mãe, aqueles
perpétuos embaraços, aquele conselho de família, aquela amante mesquinha, nem
aquela sífilis – e que pode haver de mais injusto do que o seu fim prematuro?
Parte da sua serenidade,
ia escrever felicidade mas a palavra certa é serenidade, provém desse pormenor.
Nos transportes públicos
ainda transporta, debaixo do braço, um jornal/revista, um livro, rodeado de
cidadãos com telemóvel por todos os lados.
José Miguel Júdice
escreve, hoje, no Diário de Notícias,
como editorial, um interessante texto:
«Há hoje quase 15
milhões de telemóveis em Portugal (14.906.434, para ser rigoroso, no ano
passado). Falamos ao telefone com uma tagarelice que contraria aquela imagem do
país sisudo e triste do antigamente. Se temos ou não alguma coisa interessante
ou criminalmente inculpadora para dizer, fica ao critério de cada um, mas o
facto é que, no ano passado, cada português falou 51 horas ao telemóvel. É uma
média, claro, tem de se admitir que se há quem tenha sempre qualquer coisa para
dizer, como o Prof. Marcelo, também há quem não tenha nada. E é um progresso.
Em 1990 ainda os telemóveis eram poucos, cada um falava, em média, 21 horas por
ano ao telefone.
Com o telemóvel
tudo mudou. Quase triplicou. Hoje, o número de horas que os portugueses passam
ao telefone por ano é de 510 milhões. 510.000.000. Para aqueles que têm alguma
dificuldade com tantos milhões, incluindo ministros das Finanças e banqueiros,
podem-se pôr as coisas de um modo mais simples. Há 510 milhões de horas, ainda
havia mamutes a pastar no Alentejo e entre os nossos antepassados neandertais
agitava-se um movimento político que urrava chega à invasão de homo sapiens,
imigrantes ilegais que vinham ocupar as nossas cavernas e comer os nossos
javalis.
Reduzidas
assim às suas proporções, 15 mil escutados por ano num país de tagarelas nem é
muito. Um pouco mais de esforço, por favor.»
Tanta palavra para chegar a ti, tanta palavra, sem nenhuma alcançar entre as ruínas do delírio a ilha, sempre mudando de forma, de lugar, estremecida chama, preguiçosa vaga fugidia do mar de Ulisses cor de vinho.
Eugénio de Andrade O Ofício de Paciência
em Poesia
Portugal é um enorme
buraco e não se consegue vislumbrar qualquer ponta de retorno que permita que
nos tornemos um país, minimamente decente.
Para além de outras
coisas, péssimas coisas, Ricardo Araújo Pereira põe um dos dedos nas muitas
feridas que nos rodeiam:
«Portugal abusa na bandalheira e André Ventura ganha
com este lamaçal. Isso é imperdoável.»
1.
António Costa é um dos políticos mais experientes do círculo
português mas custa a crer como se rodeou de ministros e colaboradores que deixam,
em todos os sentidos, muito a desejar.
Por causa do ministro João Galamba arranjou uma guerra
tão estutúpida, como inútil, com o Presidente da República que sempre entendeu
que Galamba não tinha condições para ser ministro e António Costa insistiu em
mantê-lo.
Agora o ministro das Infraestruturas apresentou um pedido
de demissão do cargo ao primeiro-ministro. Na última sexta-feira, na Assembleia
da República, o governante tinha afastado este cenário, mas justifica agora a
decisão como a "única possível" para assegurar à família a
"tranquilidade e discrição a que inequivocamente têm direito", isto
apesar de entender que "não estavam esgotadas as condições políticas de
que dispunha" para exercer funções.
«O trabalho feito,
os seus bons resultados e o desempenho das minhas funções com absoluto respeito
pela lei e com total dedicação ao País e aos portugueses são, em meu
entendimento, as condições políticas necessárias para o desempenho de funções
governativas", defendeu, num comunicado em que alerta também que esta
demissão "não constitui uma assunção de responsabilidades quanto ao que
pertence à esfera da Justiça e com esta não se confunde".»
António Costa acumulará o cargo de ministro das
Infraestruturas.
2.
Tão cedo não iremos saber o que se passou com Mário
Centeno, António Costa e Marcelo rebelo de Sousa. Apenas ressalta que é um
péssimo número que nos deixa no meio da risota do circo, nacional, europeu,
talvez mundial.
«A pergunta que
deixo é esta: Não podendo, nem devendo, a política meter-se no trabalho da
Justiça, que penalizações a própria Justiça aplicou aos responsáveis por erros,
omissões, incompetências, demoras, desleixos, teimosias e atropelos ao bom
senso que, como é evidente, sempre que um caso é mediático, sistematicamente os
investigadores judiciais cometem?... Que fizeram sobre isso, por exemplo, o
Conselho Superior do Ministério Público ou o Conselho Superior da Magistratura?
E já nem falo das
violações de segredo de justiça que, em todos estas situações, aconteceram e
que arruinaram a reputação pública de alguns inocentes.
Se o Ministério
Público quer que confiemos nele, tem de fazer Justiça a si próprio.»
Capa: Fernando Mateus sobre gravura do pintor David de
Almeida
Relógio de Água Editores, 1992
Encontrei a minha
irmã, a mana, Alena, que há vinte anos não via. Era outra vez pequenina, com
bochechas, os cabelos encaracolados e mais loiros do que os meus porque
costumava lavá-los numa infusão de camomila, e eu com champô ocidental.
Olhava-me, com a boca ligeiramente aberta, depois pôs-se a chorar, chorámos
ambos, e eu acabei pr perguntar: “Jak se ti vede, milácku?” Perguntei-o entre
soluços.
Mostrei-lhe Évora,
e admirou o granito, mostrei-lhe a estrada que passa por cima da Malveira da
Serra, descemos do velho Citroen, uma arrastadeira que resvalava pela areia no
cabo da Roca, o sol descia, alaranjava, e a minha irmã, a Alena, desenhou uma macaca
e, atirando a pedrinha, saltou até ao céu e ao inferno, naquela abóboda onde o
jogador tem de dar uma volta de 180º.
Depois levei-a ao
aeroporto cheio de balões coloridos, um deles esperava-a, subiu ao cesto, o
balão estremeceu e iniciou o voo. Dizia adeus com a mão, sempre mais pequenina
e, logicamente, desaparecemos.