sábado, 30 de junho de 2018

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...


Esta é a 1ª página do Diário de Notícias de hoje.

A partir de amanhã, a edição em papel só sairá aos domingos.

Nos restantes dias terá uma edição digital.

Dizem que é um passo em direcção ao futuro, um futuro mais firme.

Na quinta-feira, na «Quadratura do Círculo» , José Pacheco Pereira disse: o Diário de Notícias acabou!

Ferreira Fernandes não está nada de acordo e, hoje, num texto bem esgalhado, explica a Pacheco Pereira o tal futuro mais firme.

Não serei tão taxativo como Pacheco Pereira, mas, face a esta mudança,  também tenho as minhas dúvidas.

O meu avô paterno, republicano histórico, odiava o Diário de Notícias, como então se dizia, o jornal das sopeiras e só lia O Século.

Segui-lhe as pisadas e, também,  muito raramente passei as mãos pelas suas páginas.

O Diário de Notícias apenas foi o meu jornal enquanto os nomes de Luís Barros e José Saramago estiveram no cabeçalho do jornal.

De Abril a Novembro de 1975: os dias dos dias.

Como escreveu José Saramago no prefácio a Os Apontamentos:

«É esse o tempo em que os trabalhadores do Diário de Notícias, na sua grande maioria activa e participante, avançam para a realização de um objectivo que naquela casa, até aí, havria de ter parecido impossível, mesmo em horas de fantasia louca: pôr o jornal ao serviço das classes trabalhadoras, ao serviço do proletariado industrial e agrícola, ao serviço do socialismo, para tudo dizer em uma palavra»

DIZ-SE QUE OS ANJOS VOAM


Diz-se que os anjos voam
doutro modo; leves;
que não levam peso
quando partem:
a nossa miséria já filtrada,
a sua misericórdia imponderável;
flutuam; pairam; vogam:
verbos de pouca densidade;
cânones vigiaram
o crescimento das asas
nas pinturas heréticas;
concílios redigiram normas
a impor asas mais breves:
para que voem; ut volent;
basta a sua essência aérea;
e assim, nenhum anjo sofreu
as leis reais do nosso peso; nem pôde,
por isso, conhecer-nos.

Carlos de Oliveira em Entre Duas Memórias

sexta-feira, 29 de junho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Sempre que a minha avó me via a ler na cama, costumava dizer-me: «Larga isso, que os livros são perigosos.» Durante muitos anos acreditei na sua ignorância, mas o tempo demonstrou a sensatez da minha avó alemã.

Carlos María Domínguez em A Casa de Papel

OLHAR AS CAPAS


Versos Abrasileirados

Paulo da Costa Domingos
Capa e ilustrações: Bárbara Assis Pacheco
&etc, Lisboa, Novembro de 2012

Alexandre O’Neill – Fernando Assis Pacheco – Carlos Drummond de Andrade, Ida e Volta

Minha amiga, seu leite
está todo à mostra
derramado pela montra;
até seus dentes de marfim
parecem teclas de um piano
que, por racismo, houvesse
expulso as pretas. E mais
lhe digo: mesmo míope
já se vê que você é
porto franco do cocuruto à
unha do pé. Consigo,
nem vale a pena escandir sílaba:
vamos lá pela respiração;
que a limpeza desse estendal
derreia qualquer asmático… e
o que não sofrerão cardíacos!

Quanto a música, os homens
que passam, ante uma pauta assim,
apreciadores do spread das notas,
não há quem a veja que não
tocasse, dizem eles, com certeza
dez oitavas bem medidas.
A duas mãos. Porque no improvisos,
afinal as pretas se refugiaram todas
bem do centro do seu jardim.
Mulheres então não perdem
pela demora é um ver se t’avias,
púcaro a púcaro, bilha a bilha,
num coro de partir loiça.

Se eu tivesse alguma fé supersticiosa,
benzer-me-ia entre murmúrios
de; Meu Deus, que puta!

EU SABEREI DAR A RESPOSTA


Não, não importa quem me indulte.
Deixa.
Eu saberei dar a resposta.

Que me chamem os reis.
Pois que me chamem.
Sei
O que dizer-lhes.

A minha estrada é larga

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

ERA APENAS UM RETRATO


era apenas um retrato
que um fotógrafo de ocasião nos tirou
e tinha a história de não ter
história nenhuma
(já li uma frase assim no Alberto Caeiro
desculpa)

lembro-me: nem sequer olhávamos um para o outro
embora o fotógrafo se tivesse esforçado muito
em nos mostrar felizes
mas ele não podia adivinhar que a hora da partida
se desenhava no fumo dos cafés que bebíamos
ao som triste da Anne van der Lowe no jukebox
das gares onde adiávamos diariamente
os funestos rumores do esquecimento

talvez tivéssemos estremecido um pouco
e por isso os nossos rostos ficaram
levemente desfocados
como se naquele momento tivéssemos encontrado
a mais eficaz palavra
de despedida

quinta-feira, 28 de junho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Todas as gerações, sem dúvida, se julgam fadadas para refazer o mundo. A minha sabe, no entanto, que não poderá refazê-lo. A sua tarefa é talvez maior. Consiste em impedir que se desfaça, partindo unicamente das suas negações.

Albert Camus em Discursos da Suécia

LEVEI TEMPO A ENTENDER QUE SIM


Tudo se complicava muito porque nós (mas quais de nós?, quantos de nós?) sentíamos, como um espinho na carne, o dever de lutar pela felici­dade dos outros. Não o fazer era uma espécie de pecado. Não sabíamos viver com esse peso, essa hi­pótese sequer, na consciência. Mas lutar seria obe­decer de olhos fechados a uma orientação que (e assim me parecia mais e mais) não levaria a lado algum, à transformação dos homens certamente não? E o papel do intelectual (como o de qualquer outro militante) poderia limitar-se a subir e descer escadas com o único objectivo de subir e descer es­cadas? Não seria sua estrita obrigação (não só dele, mas sobretudo dele) esclarecer, esclarecer, esclare­cer os que só o não são, à partida, por defeituosa, criminosa organização da sociedade? Uns, como eu, pensavam (o Cochofel, o Carlos de Oliveira, o Lopes Graça, não só estes) que a militância do ar­tista deveria ser sobretudo (sobretudo, não só) no campo cultural. E que ela de modo nenhum deve­ria impedir o artista de dedicar-se ao conhecimento profundo da linguagem específica da arte e seus problemas. Que não havia arte revolucionária sem começar por ser arte. Que a desejada acção da arte junto do público, além de arte ser, exigia um míni­mo de preparação da parte deste, a incluir nas tare­fas políticas dos intelectuais. Que — princípio e fim de tudo — considerar a chamada «forma» e o chamado «conteúdo» elementos (metafisicamente) separáveis revelava, não um conceito marxista, mas um «mecanicismo pré-dialéctico», como já lhe chamara, sem que qualquer de nós o pudesse então saber, o insuspeito Mikail Bakhtine. Outros (muito mais poderosos na organização, deliberando o que pensar, desde o vértice da pirâmide a toda a base) defendiam, e com que intransigência!, precisamen­te o contrário.
 Coisas graves me pareciam que a crítica de bai­xo para cima (a inversa nunca esteve em causa), embora muito apregoada, nunca fosse possível exercê-la, que a repetição de palavras de ordem até ao atordoamento, mesmo no interior, substituísse uma cultura cientificamente indagadora, que qual­quer discordância de fundo obtivesse invariavel­mente como resposta: «terás razão, mas não é este o momento de». Quando a cultura não é nunca para amanhã, é sempre para já. O futuro o diria, o presente o está dizendo.
 Por que não se esquecem certas coisas? Ao pas­sar a simples «simpatizante» (era tudo afinal o que então queria e, a custo, consegui), um «amigo» — entre aspas a partir desse preciso instante — disse-me de olhinhos fixos e brilhantes: «Nunca mais farás nada». Mau agoiro para quem queria fa­zer tanto.
 Uma ameaça? Levei tempo a entender que sim.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Mário Dionísio. Fotografia tirada do catálogo Passageiro Clandestino

SOU UMA CRIATURA


Como esta pedra
de São Miguel
assim fria
assim dura
assim enxuta
assim refractária
assim totalmente
desanimada

Como esta pedra
é o meu pranto
que não se vê

A morte
desconta-se
vivendo

Giuseppe Ungaretti em Sentimento do Tempo

quarta-feira, 27 de junho de 2018

POSTAIS SEM SELO


Viver o dia de hoje. Não confiar no futuro.

Autor desconhecido

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

NÃO TENHO ONDE PUBLICAR EM PORTUGAL


Carta de António José Saraiva, datada de Paris, Junho de 1968:

Tenho um estudo de 115 páginas sobre o «discurso engenhoso» em Vieira que gostava que lesses. Só tenho um exemplar corrigido. Terás tempo para o leres e comentares? Diz.
Interessa-me a proposta editorial. Tenho um livro sobre Inquisição e Cristãos Novos (muito diferente do meu limitado sobre a Inquisição) que gostava de editar o mais depressa possível. E talvez um livro de ensaios, miscelânico. Diz se algum deles interessa. Estou em más relações com a aEuropa-América. A Seara Nova recusa-me os artigos; o Tempo e o Modo nunca me convidou obstinadamente (apesar de sugestões de terceiras pessoas nesse sentido). De modo que, tirante o Comércio do Porto, não tenho onde publicar em Portugal. Curioso destino dum autor «à succès»!


Legenda: capa de Inquisição e Cristãos-Novos publicado em Fevereiro de 1969, mercê da influência de Óscar Lopes, pela Editorial Inova do Porto.

OLHAR AS CAPAS


O Cadáver de Argila

Mary Kelly
Tradução: Álvaro Simões
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 193
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Havia já duas semanas que eu espiava Corinna. Pagavam-me para o fazer. Por isso, quando, às duas e meia da tarde, do meu posto de observação na biblioteca a vi sair da sala de desenho, levantei-me com a maior naturalidade deste mundo e fui atrás dela. Apenas com uma diferença: após os acontecimentos daquela manhã, nem sequer me dava ao trabalho de me esconder.
Ela dirigiu-se ao vestiário das mulheres e, no limiar, fez quase meia volta e olhou-me.
- Por que não entra? – zombou , sem convicção.
No fim de contas, por que não? Era uma hora em que não corríamos o mais pequeno risco de que nos incomodassem. Por conseguinte seguia-a até ao interior do vestiário.
Podia avistar-se, pela pequena fresta, uma parte de Stoke-on-Trent; uma fileira de fornos que preenchia o intervalo existente entre os edifícios de tijolo enegrecido e, mais adiante, a chaminé de uma fábrica e o cimo de um monte de escórias. Uma nuvem de fumarada cinzenta, fundindo-se com a morrinha, mascarava por completo o horizonte.

BATE A NOITE AS ASAS CONTRA O POENTE


Bate a noite as asas contra o poente
e tinge de escuridão as águas côncavas
que vêm dormir nos poços de silêncio
abertos sobre o mar
enquanto a risca do sol
lança uma ponte de luz
até às distâncias oceânicas
onde o dia vai alto.

Parte destas penedias um aceno
de quem viu nascer Vénus das ondas,
vogar o carro de Neptuno,
Hércules abrir a pulso o caminho a Colombo.

Um aceno distante.
Até vós, dominadores efémeros
de napalme, jazz e plástico,
coisas de que ninguém se lembrará
daqui a três mil anos.

Nem dos mortos
que jamais ressuscitarão.

João José Cochofel em 46º Aniversário

terça-feira, 26 de junho de 2018

POSTAIS SEM SELO



As claques de futebol dos grandes clubes são as únicas associações de criminosas que funcionam à luz do dia.


José Pacheco Pereira

OLHAR AS CAPAS



em minúsculas

Herberto Helder
Selecção: Daniel Oliveira, Diana Pimentel, Raquel Gonçalves
Prefácio: Daniel Oliveira
Porto Editora, Porto, Abril de 2018

   «Vós sois o sal da terra.» Quem é o sal da terra? Por mim, acho que são as pessoas mais ou menos (ou até completamente) marginais: as que protestam contra, contestam, põem dúvidas sobre, ignoram ou não levam a sério, riem de, gozam com - a sociedade onde (por acaso, dizia o outro) se encontram. Vê a gente uma cidade e repara logo que ela respira pelo lado da irregularidade. A irregularidade que cria, evidentemente. Os lugares estão cheios de bom comportamento, entradas e saídas nos escritórios, tanto de largura e altura para as intenções e os actos, os respeitosos cumprimentos a vossências - e a irremediável venda de cada um, a curto ou a longo prazo. Ele é tudo almas à comissão ou à consignação. Mas eis que aparecem os extravagantes, os originais, os bizarros, os exóticos, os despassarados, os que não, os que trazem uma lá deles no meio da cabeça esfuziante. Eles são o sal da terra.

E AGORA TU RÓIS-TE


Um certo tipo de vida quotidiana (horas fixas, ambientes fechados, as mesmas pessoas, formas e locais de oração) induzia a pensamentos sobrenaturais. Saia-se deste esquema e os pensamentos evaporam-se. Somo feitos de hábitos.
O local próprio para a tua pessoa é a avenida de Turim, aristocrática e modesta, primaveril e estival, calma, discreta e vasta, onde se formou a tua poesia. A matéria vinha de muitos sítios, mas aqui é que encontrava a forma.
Esta avenida, e o pequeno café que ali ficava, foram o teu quarto, a janela aberta para as coisas. Quando te volta o instinto de poetar, procuras estes locais. Para narrar, não. As Recordações de Duas Estações foram escritas no café e, no fundo, também Terras do meu país e a Tenda. Portanto…
O facto é que perdeste o gosto de ver, de sentir, de acolher e agora róis-te todo.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

DAMOS UM PASSO NA CIDADE


Damos um passo na cidade e logo
nos espantamos de ainda estarmos vivos.
Para quê e porquê? perguntamos excitados.
As horas e o dinheiro nos respondem
e é então que descobrimos o mistério
de não podermos andar com os bolsos cheios
de flores de pássaros e pão
a despejá-los sem medo de ofender
pelos homens e mulheres silenciosos
regressando do trabalho pelas ruas.

Eduardo Valente da Fonseca em 71 Poemas

segunda-feira, 25 de junho de 2018

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Publica-se o poema de António Gedeão «Poema do Cão ao Entardecer», poema que, segundo Rómulo de Carvalho nas suas «Memórias», muito terá agradado a Agustina Bessa Luís:

Um cão no areal corria presto.
Presto correria o cão no areal deserto.

Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.

Corria em linha reta, presto, presto,
pela orla do mar.
Pela orla do mar, em linha reta,
corria presto, o cão.

Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha reta
pela orla do mar.

Sem princípio nem fim, em linha reta,
pela orla do mar.

Era ao entardecer,
na hora espessa, peganhenta e úmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha reta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha reta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as retas que se dizem paralelas.
Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.

Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha reta mais suposta
que o areal e o mar
Mas presto, presto, sempre presto, presto,
ia correndo o cão no areal deserto.

António Gedeão em Obra Completa

UMA GRACINHA DO AUTOR


A crítica recebeu bem os Poemas Póstumos, com louvores, e ninguém se preocupou que fossem póstumos. Uma gracinha do autor. Somente Agustina Bessa Luís, em editorial do Primeiro de janeiro, ao referir-se a uma “bola de sabão que se confunde com o mundo colorido”, acrescenta: “o tal nas mãos de uma criança, como dizia António Gedeão, que deus guarde.” (7.XII.86). Não sei qual teria sido a razão destas palavras mas talvez que quem as escreveu as tomasse à letra porque, pouco mais de quinze dias decorridos. Agustina faz, no mesmo jornal, a crítica aos Poemas Póstumos que já tinham saído há três anos, em 1983, o que é estranho. Talvez que, ao dar-me por morto, alguém que estava vivo e que a senhora, a modo de desculpa, falasse de mim com mais demora. Ou então, o que será mais certo, como lhe mandei pelo correio, um exemplar dos Poemas Póstumos após o seu “que Deus guarde”, ela se entretivesse a folheá-lo e o considerasse digno de redigir algumas palavras a seu respeito. Também é verdade que não me não me agradeceu o livro mas leu-o e gostou, principalmente o “Poema do cão ao entardecer” a propósito do qual dizia que há quem afirme que um poema nunca deve ser bom de mais. Aquele parece que o era. Desculpará.

Rómulo de Carvalho em Memórias

Legenda: Agustina Bessa Luís

CHUVA


Chove uma grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.

Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer...

Miguel Torga em Diário, 2º volume

domingo, 24 de junho de 2018

POEMA SOBRE FOME


Estra fome é boca
não se consome
Esta fome é voz
forca de homem

O olhar da fome
não é como sono
A boca do homem
sabe seu nome

Esta voz da fome
não é uma só
Cada boca soma
para o seu som

A boca da fome
é do homem todo
o homem tem força
de seu ódio novo

Fiama Hasse Pais Brandão em Antologia da PoesiaUniversitária

sábado, 23 de junho de 2018

UM MORTO É UMA PESSOA SÉRIA


Ainda não são três horas quando chega ao Alto de Santa Catarina. As palmeiras parecem transidas pela aragem que vem do largo, mas as rígidas lanças das palmas mal se mexem. Não consegue Ricardo Reis lembrar-se se já aqui estavam estas árvores há dezasseis anos, quando partiu para o Brasil. O que de certeza não estava era este grande bloco de pedra, toscamente desbastado, que visto assim parece um mero afloramento de rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor, se neste sítio o instalaram não deve ser longe o cabo da Boa Esperança. Lá em baixo, no rio, vogam fragatas, um rebocador arrasta atrás de si dois batelões, os navios de guerra estão amarrados às bóias, com a proa apontada à barra, sinal de que a maré está a encher. Ricardo Reis pisa o saibro húmido das áleas estreitas, o barro mole, não há outros contempladores neste miratejo se não contarmos dois velhos, sentados no mesmo banco, calados, provavelmente conhecem-se há tanto tempo que já lhes falta de que falarem, talvez andem só a ver quem morrerá primeiro. Friorento, levantando a gola da gabardina, Ricardo Reis aproximou-se da grade que rodeia a primeira vertente do morro, pensar que deste rio partiram, Que nau, que armada, que frota pode encontrar o caminho, e para onde, pergunto eu, e qual, Ó Reis, você por aqui, está à espera de alguém, esta voz é de Fernando Pessoa, ácida, irónica, virou-se Ricardo Reis para o homem vestido de preto que estava a seu lado, agarrando os ferros com as mãos brancas, não era isto que eu esperava quando para cá naveguei sobre as ondas do mar, Espero uma pessoa, sim, Ah, mas você não está nada com boa cara, Tive uma ponta de gripe, deu forte, passou depressa, Este sítio não é o mais conveniente para a sua convalescença, aqui exposto aos ventos do mar largo, É só uma brisa que vem do rio, não me incomoda, E é mulher essa pessoa que você espera, É mulher, Bravo, vejo que você se cansou de idealidades femininas incorpóreas, trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher as mãos, que eu bem a vi lá no hotel, e agora está aqui à espera doutra dama, feito D. João nessa sua idade, duas em tão pouco tempo, parabéns, para mil e três já não lhe falta tudo, Obrigado, pelo que vou aprendendo os mortos ainda são piores que os velhos, se lhes dá para falar perdem o tento na língua, Tem razão, se calhar é o desespero de não terem dito o que queriam enquanto foi tempo de lhes aproveitar, Fico prevenido, Não adianta estar prevenido, por mais que você fale, por mais que todos falemos, ficará sempre uma palavrinha por dizer, Nem lhe pergunto que palavra é essa, Faz muito bem, enquanto calamos as perguntas mantemos a ilusão de que poderemos vir a saber as respostas, Olhe, Fernando, eu não quereria que o visse esta pessoa por quem espero, Esteja descansado, o pior que poderá acontecer é ela vê-lo de longe a falar sozinho, mas isso não é coisa em que se repare, todos os apaixonados são assim, Não estou apaixonado, Pois muito o lamento, deixe que lhe diga, o D. João ao menos era sincero, volúvel mas sincero, você é como o deserto, nem sombra faz, Quem não tem sombra é você, Perdão, sombra tenho, desde que o queira, não posso é olhar-me num espelho, Agora me fez lembrar, diga-me cá, afinal sempre se mascarou de morte no entrudo, Ó Reis, então você não viu que se tratou duma brincadeira, ia-me lá eu agora fantasiar de morte, medievalmente, um morto é uma pessoa séria, ponderada, tem consciência do estado a que chegou, e é discreto, detesta a nudez absoluta que o esqueleto é, e quando aparece; ou se comporta como eu, assim, usando o fatinho com que o vestiram, ou embrulha-se na mortalha se lhe dá para querer assustar alguém, coisa a que eu, aliás, como homem de bom gosto e respeito que me prezo de continuar a ser, nunca me prestaria, faça-me você essa justiça, Já esperava que a resposta fosse essa, ou aproximada, e agora peço-lhe que se vá embora, vem aí a pessoa que eu esperava, Aquela rapariga, Sim, Nada feia, um pouco magrizela para o meu gosto, Não me faça rir, é a primeira vez na vida que o ouço explicar-se a respeito de mulheres, ó sátiro oculto, ó garanhão disfarçado, Adeus, caro Reis, até um destes dias, deixo-o a namorar a pequena, você afinal desilude-me, amador de criadas, cortejador de donzelas, estimava-o mais quando você via a vida à distância a que está, A vida, Fernando, está sempre perto, Pois aí lha deixo, se é vida isso.

E DEPOIS...


E depois… era só uma canção.
Talvez houvesse também a alegria dos sinos.
… Quem sabe se um anjo aproximou do meu coração
as suas asas?

Trago agora um adeus na palma da mão,
vestido de sombra. Uma estrela
extinguiu-se-me nos rastos
… e nenhum anjo vela já por mim.

Felix Cucurull em Vida Terrena

sexta-feira, 22 de junho de 2018

CONSTANTINOPLA DOS NOSSOS SONHOS DE INFÂNCIA


De Carcavelos, a 16 de Abril de 1974 – mais uns dias e será 25 de Abril de 1974! –  Mário-Henrique escreve à «Querida Menina»:

É pena que não tenha gostado de Istambul, a velha Constantinopla dos nossos sonhos de infância. Eu confesso que gostei; mas eu sou um vagabundo, bem sabes. Galata, peixe frito com aquele vinho transparente da Ásia Menor, azeitonas, andar pendurado nos eléctricos à cunha, negociatas aldrabonas no Bazar, enfim, uma gente humana, gritadora e trafulha, mas muito viva. Bem, isto foi por 1957, já lá vão tantos anos que talvez o que m reste na memória seja apenas aquela saudade melancólica que embeleza tudo. Sei lá!
Desculpa este discordar de ti. Olha tenho andado (e ando9 numa tal depressão moral (e até física) que nem sei como vou sair dela. Não consigo escrever uma linha, nem sequer as colaborações para os habituais pasquins. Nada. O que desejava era meter-me num buraco, numa terra distante, ficar só, nem sei o que desejo, realmente estou besta mesmo. Passo os dias deitado a olhar para o tecto e a fumar cigarros… e a beber doses industriais de tudo o que consigo arranjar (se consigo, já se vê). Valerá a pena estar vivo? Cada vez pergunto com mais insistência isto a mim mesmo. Não sei, na verdade não sei nada.

OLHAR AS CAPAS


O Mistério da Arca de Noé

Ellery Queen
Tradução: Elisa Lopes Ribeiro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 80
Livros do brasil, Lisboa s/d

Enterrado numa poltrona de couro, diante da janela, com os pés calçando huarachos, as alpercatas mexicanas, cruzados em cima da máquina de escrever, e um grande copo de rum gelado na mão, Ellery matutava no cadáver. Para ele, era como se ela estivesse viva, estendida a seus pés. Examinava os sintomas da vida, entre dois goles, e não encontrava a chave do enigma. Oh! Estavam ainda no princípio de uma investigação, que prometia sair do vulgar, e o rum ajudava.
Caso curiosos! A morta ainda estremecia. Já em Nova Iorque, Ellery fora prevenido dessa ilusão criada pelos reflexos resultantes de uma morte violenta. «Parece impossível, tinham acrescentado, mas o corpo já entrou em decomposição, e qualquer pessoa capaz de distinguir uma camélia de um cardo, pode verificar o facto.» A vítima, que Ellery conhecera na flor da idade, era uma criatura formosa e saudável, cobiça de todo os homens, objecto folgazão de desejos e maldições… Como aceitar a ideia de que semelhante vitalidade for bruscamente abatida?
Sim, no local do crime – por coma, exactamente, porque o pavilhão que ele alugara parecia um ninho alcandorado na árvore mais alta das colinas próximas – Ellery duvidava ainda. A bela moça jazia ali, sob uma fina camada de bruma; estremecia ligeiramente e diziam que estava morta.
Hollywood, terra de ilusões,
Assassinada, concluía o relatório da autópsia, transmitido pela televisão.
Sob um céu levemente azulado pelos grandes calores, a colina verdejante e florida descia até à cidade que resplandecia ao sol. Que dia radioso! Muito à vontade no seu trajo de Adão no Paraísos terrestre, Ellery saboreava o rum e contemplava o panorama.

DE QUE SÃO FEITOS OS DIAS?


De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças.

Cecília Meireles

quinta-feira, 21 de junho de 2018

NO CORAÇÃO DA NEVE


No coração da neve
e no espaço
no silêncio e na infância
no amor na solidão na liberdade
na gentileza na fraternidade
o mesmo puro delírio
de iluminar as trevas
sem diminuir o sonho
e fazê-las cantar
à luz do dia

António Ramos Rosa

segunda-feira, 18 de junho de 2018

VEM DEITAR-TE COMIGO E SÊ O MEU AMOR


Vem deitar-te comigo e sê o meu amor
Amor deita-te comigo
Sob o cipreste
Na relva macia
Onde o vento se deita
Onde o vento morre
Quando a noite passa
Vem deitar-te comigo
Toda a noite comigo
E sacia-te dos meus beijos
E sacia-te do amor
E que os nossos dois eus conversem
Toda a noite sob o cipreste
Sem se amarem

Lawrence Ferlinghetti em Como eu Costumava Dizer

domingo, 17 de junho de 2018

A VARANDA


A varanda
é só recreio
e altura

para vermos
as pombas
e o céu

para aquecermos os pés
descemos
à rua

e passeamos
com naturalidade

António Reis em Poemas Quotidianos

sábado, 16 de junho de 2018

PERDI O TEU ROSTO


perdi o teu rosto
o de maio
e também o de junho com a cidreira
não há esperança
agora os dias são menos dias
diz-se que são mais curtos
através da folhagem do verão
é uma hipótese para as pequenas aves
e talvez que bicando    voando
recuperem elas qualquer coisa
do que foi a tua passagem por aqui

Abel Neves em Resumo: a poesia em 2013

sexta-feira, 15 de junho de 2018

POSTAIS SEM SELO


No fundo sabemos que o outro lado de todo o medo é a liberdade.

MANTER MEUS PASSOS FIRMES


Quero um gesto perfeito:
o caminho na tua direcção.

Quero encontrar os que não vão comigo
mas que têm a ver com a injustiça.

Quero, no cumprimento desta hora,
manter meus passos firmes.

Quero de coração aberto
não ter que envergonhar-me.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

OLHAR AS CAPAS


Gente da Sicília

Elio Vittorini
Tradução: Rosália Braamcamp
Capa: Bernardo Marques
Colecção Miniatura nº 112
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Eu andava, aquele inverno, sacudido por abstractos furores. Não direi quais, não é isso que me proponho contar. Mas é preciso dizer que eram abstractos, não heroicos, não vivos; de qualquer forma furores, por ver perdida a espécie humana. Isto há muito tempo, e andava com a cabeça caída. Via comunicados gritantes nos jornais e baixava a cabeça; via os amigos, durante uma hora, duas horas, e estava com eles sem dizer uma palavra, baixava a cabeça; e tinha uma rapariga, uma mulher que me esperava, mas nem sequer com ela dizia palavra, também baixava a cabeça. Ia chovendo e passavam os dias, os meses, e eu tinha os sapatos rotos, a água entrava-me nos sapatos, e não havia mais nada além disto: chuva, massacres nos comunicados dos jornais, e água nos meus sapatos rotos, amigos mudos, a vida em mim como um negro sonho, e nenhuma esperança, apenas calma.
O mal era esse: a calma na não esperança. Julgar a espécie humana perdida e não sentir desejo de fazer qualquer coisa contra isso, vontade de perder-me com ela, por exemplo.
Andava agitado por abstractos furores, mas não no sangue, e estava calmo, não tinha vontade de nada. Não me importava que a minha rapariga me esperasse; estar ao pé dela ou não, ou folhear um dicionário era para mim o mesmo; e sair a ver os amigos, os outros, ou ficar em casa era também para mim o mesmo. Estava calmo; era como se nunca tivesse tido um dia de vida, nem tivesse jamais sabido o que significa ser feliz, como se nada tivesse a dizer, a afirmar, a negar, nada de meu para pôr em causa, e nada a ouvir, a dar, e nenhuma disposição de receber, e como se em todos os meus anos de existência nunca tivesse comido pão, bebido vinho ou café, nunca tivesse estado na cama com um rapariga, nunca tivesse tido filhos, nunca tivesse dado um murro em ninguém, ou não julgasse tudo isto possível, como se nunca tivesse tido uma infância na Sicília entre as piteiras e as minas de enxofre, nas montanhas; mas revolviam-se esses abstractos furores, e achava a espécie humana perdida, baixava a cabeça. E chovia: eu não dizia palavra aos amigos, e a água entrava-me nos sapatos.

AEROPORTO


A mala que segue viagem
Assim como o avião
Têm a grande vantagem
De não terrem coração.

Só formas amplas – metais
De uma brancura de praia!
Dentro, vão sonhos a mais.
É bom que a mala não caia.

Mala do sonho, vais bem
Assim deitada de lado?
Chega-te a roupa que tens
Ou chamamos o criado?

Ou chamamos o fantasma
Da queda livre no espaço,
Verga do pássaro de aço
Onde a poesia se espasma

quinta-feira, 14 de junho de 2018

POEMA


Estas palavras são a casa dum louco.
Anda lá dentro um
e a falar só…

Este papel branco é a luz calcárea
os cegos acordeonistas de Lisboa…

A minha casa fica na Manhã.

José Fernandes Fafe em Poesia Amável

quarta-feira, 13 de junho de 2018

POSTAIS SEM SELO


E que aborrecimento não beber. O mundo, em si mesmo, é muitas vezes entediante e carece de verdadeira emoção. Sem álcool uma pessoa está perdida.

Enrique Vila-Matas