O livro de crónicas
de Sam Shepard, “Day Out of Days” (2010), contém uma deliciosa
história acerca da forma como Fats Domino foi salvo, nas inundações de
New Orleans de 2005 provocadas pelo furação Katrina. Vou tentar abreviar,
embora a crónica tenha onze páginas…
As equipas de
salvamento, que procuravam avidamente sobreviventes da catástrofe em locais
menos acessíveis, depararam com Fats Domino sentado em cima do telhado de sua
casa, que era a única parte da dita que não se encontrava submersa pelas águas.
Fats estava impecavelmente vestido de smoking, laço e sapatos de verniz
italianos, como se tivesse sido apanhado pela borrasca no preciso momento em
que se preparava para sair de casa para dar um concerto.
Com alguma
dificuldade, o avantajado Fats foi transferido para o barco de salvamento,
tendo-se sentado na parte traseira com ar pensativo. A crónica não o diz, mas
imagino que a parte dianteira do barco se tenha empinado um bocadinho…
Passado algum tempo
um grito estridente assustou toda a gente… O barco balouçava perigosamente e
Fats, de pé, apontando para algo que estaria dentro das águas e que só ele
parecia ver, gritava como um louco: “O meu piano! O meu querido piano
branco…! É preciso salvá-lo…”
Antes que alguém
pudesse fazer qualquer coisa já Fats saltava para dentro de água e, nadando
desajeitadamente, tentava alcançar o seu piano.
Era um piano enorme
de cauda, que devia ter sido belíssimo nos seus tempos áureos.
Fats, com toda a sua
determinação, conseguira alcançá-lo e agarrava-se a uma das pontas com quantas
forças tinha. Mas a força da água era muita e de tempos a tempos piano e Fats
submergiam, para voltarem à tona alguns metros mais adiante.
As equipas de salvamento, entretanto, alcançaram-no e insistiam com ele para que largasse o maldito piano e regressasse ao barco, perante a situação de risco em que se encontrava. O piano era enorme, diziam-lhe, e não havia qualquer hipótese de o transportar…
Mas Fats recusava-se a largar o piano, agarrando-se ao que podia dele como se fosse a coisa mais preciosa que existisse na sua vida. Ou se salvavam ele e o piano, dizia, ou não se salvaria nenhum deles…
Perante tamanha
intransigência e não se sabe vinda de onde, uma corda enorme foi atada ao piano
e Fats Domino, sempre agarrado a ele como o Capitão Ahab à baleia branca, foi
finalmente transportado em segurança até terra firme.
Shepard afirma que a
história lhe fora contada por um desconhecido durante uma viagem de avião e
que, já quase ao aterrar, não resistiu a perguntar ao seu interlocutor se a
história que este lhe tinha acabado de contar era mesmo verdadeira... O
outro hesitou, suspirou, olhou o teto do avião e por fim exclamou: “Mas que
diferença é que isso faz…?”
Factos são factos e é
sabido, de fonte segura, que Fats Domino foi efetivamente salvo quando se
encontrava sentado no telhado da sua casa… A questão do traje a preceito e do
piano branco, essa já poderá ser outra história…
Mas, como diriam os
nossos amigos italianos, “si non e vero, e bene trovato”…!
Lembrei-me desta
história quando me dirigia de carro para a casa de Fats Domino em New Orleans,
no número 1208 da Caffin Avenue.
Naquela manhã de
Agosto chovia copiosamente, como nós, europeus, não sabemos o que é chover… Em
poucos minutos as ruas ficaram inundadas e quanto mais o maldito «gps» me
mandava virar à direita ou à esquerda, mais me aproximava de zonas onde a
altura da água era cada vez maior… Via-me rodeado de Jeeps e camiões e eram
cada vez menos os carros ligeiros, como o meu, que encontrava…
Pensei em desistir da
aventura, mas sabia muito bem que nunca me iria perdoar a mim próprio não
ter ido ver a casa de Fats Domino, estando já lá tão perto. Tanto mais que Fats era um dos meus músicos
favoritos dos anos 50 e “Blueberry Hill” uma das que certamente escolheria se
tivesse de fazer uma seleção pessoal das músicas desse tempo.
Avancei, portanto,
rezando baixinho, e lá acabei por descobrir a casa.
A água, por essa
altura, chegar-me-ia quase aos joelhos se porventura cometesse a loucura de
sair do carro. E abrir a janela seria ver todo o interior do carro inundado,
rapidamente…
Depois de várias
tentativas, consegui uma única fotografia que se visse…
E não pude andar por
lá a bisbilhotar, como sempre gosto de fazer. Pisguei-me rapidamente, não me
fosse acontecer a mim o que sucedeu ao pobre Fats: ser encontrado sentado em
cima do tejadilho do meu carro. E sem qualquer piano branco a que me agarrar…
Texto e fotografia de Luís Miguel Mira.
Texto e fotografia de Luís Miguel Mira.
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