terça-feira, 23 de outubro de 2018

ENCHA UMA CHÁVENA E PONHA-A NA MINHA FRENTE


Numa destas noites Fernando Pessoa bateulhe à porta, não aparece sempre que é preciso, mas estava a ser preciso quando aparece, a alguém, Grande ausência, julguei que nunca mais o tornaria a ver, isto disse-lhe Ricardo Reis, Tenho saído pouco, perco-me facilmente, como uma velhinha desmemoriada, ainda o que me salva é conservar o tino da estátua do Camões, a partir daí consigo orientar-me, Oxalá não venham a tirá-la, com a febre que deu agora em quem decide dessas coisas, basta ver o que está a acontecer na Avenida da Liberdade, uma completa razia, Nunca mais passei por lá, não sei nada, Tiraram, ou estão para tirar, a estátua do Pinheiro Chagas, e a de um José Luís Monteiro que não sei quem tenha sido, Nem eu, mas o Pinheiro Chagas é bem feito, Cale-se, que você não sabe para o que está guardado, A mim nunca me levantarão estátuas, só se não tiverem vergonha, eu não sou homem para estátuas, Estou de acordo consigo, não deve haver nada mais triste que ter uma estátua no seu destino. Façam-nas a militares e políticos, eles gostam, nós somos apenas homens de palavras, e as palavras não podem ser postas em bronze ou pedra, são só palavras, e basta, Veja o Camões, onde estão as palavras dele, Por isso fizeram um peralta de corte, Um D’Artagnan, De espada ao lado qualquer boneco fica bem, eu nem sequer sei que cara é a minha, Não se zangue, pode ser que escape à maldição, e se não escapar, como o Rigoletto, sempre lhe restará a esperança de que um dia lhe deitem o monumento abaixo, como ao Pinheiro Chagas, transferem-no para um sítio tranquilo, ou guardam-no num depósito, está sempre a acontecer, olhe que até há quem exija a retirada do Chiado, Também o Chiado, que mal lhes fez e Chiado, Que foi chocarreiro, desbocado, nada próprio do lugar elegante onde o puseram, Pelo contrário, o Chiado não podia estar em melhor sítio, não é possível imaginar um Camões sem um Chiado, estão muito bem assim, ainda por cima viveram no mesmo século, se houver alguma coisa a corrigir é a posição em que puseram o frade, devia estar virado para o épico, com a mão estendida, não como quem pede, mas como quem oferece e dá, Camões não tem nada a receber de Chiado, Diga antes que não estando Camões vivo, não lho podemos perguntar, você nem imagina as coisas de que Camões precisaria. Ricardo Reis foi à cozinha aquecer um café, voltou ao escritório, foi sentar-se diante de Fernando Pessoa, disse, Faz-me sempre impressão não lhe poder oferecer um café, Encha uma chávena e ponha-a na minha frente, fica a fazer-lhe companhia enquanto bebe, Não consigo habituar-me à ideia de que você não existe, Olhe que passaram sete meses, quanto basta para começar uma vida, mas disso sabe você mais do que eu, é médico.

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