Numa destas noites Fernando Pessoa bateulhe à porta, não aparece sempre
que é preciso, mas estava a ser preciso quando aparece, a alguém, Grande
ausência, julguei que nunca mais o tornaria a ver, isto disse-lhe Ricardo Reis,
Tenho saído pouco, perco-me facilmente, como uma velhinha desmemoriada, ainda o
que me salva é conservar o tino da estátua do Camões, a partir daí consigo
orientar-me, Oxalá não venham a tirá-la, com a febre que deu agora em quem
decide dessas coisas, basta ver o que está a acontecer na Avenida da Liberdade,
uma completa razia, Nunca mais passei por lá, não sei nada, Tiraram, ou estão
para tirar, a estátua do Pinheiro Chagas, e a de um José Luís Monteiro que não
sei quem tenha sido, Nem eu, mas o Pinheiro Chagas é bem feito, Cale-se, que
você não sabe para o que está guardado, A mim nunca me levantarão estátuas, só
se não tiverem vergonha, eu não sou homem para estátuas, Estou de acordo
consigo, não deve haver nada mais triste que ter uma estátua no seu destino.
Façam-nas a militares e políticos, eles gostam, nós somos apenas homens de
palavras, e as palavras não podem ser postas em bronze ou pedra, são só
palavras, e basta, Veja o Camões, onde estão as palavras dele, Por isso fizeram
um peralta de corte, Um D’Artagnan, De espada ao lado qualquer boneco fica bem,
eu nem sequer sei que cara é a minha, Não se zangue, pode ser que escape à
maldição, e se não escapar, como o Rigoletto, sempre lhe restará a esperança de
que um dia lhe deitem o monumento abaixo, como ao Pinheiro Chagas,
transferem-no para um sítio tranquilo, ou guardam-no num depósito, está sempre
a acontecer, olhe que até há quem exija a retirada do Chiado, Também o Chiado,
que mal lhes fez e Chiado, Que foi chocarreiro, desbocado, nada próprio do
lugar elegante onde o puseram, Pelo contrário, o Chiado não podia estar em
melhor sítio, não é possível imaginar um Camões sem um Chiado, estão muito bem
assim, ainda por cima viveram no mesmo século, se houver alguma coisa a
corrigir é a posição em que puseram o frade, devia estar virado para o épico,
com a mão estendida, não como quem pede, mas como quem oferece e dá, Camões não
tem nada a receber de Chiado, Diga antes que não estando Camões vivo, não lho
podemos perguntar, você nem imagina as coisas de que Camões precisaria. Ricardo
Reis foi à cozinha aquecer um café, voltou ao escritório, foi sentar-se diante
de Fernando Pessoa, disse, Faz-me sempre impressão não lhe poder oferecer um café,
Encha uma chávena e ponha-a na minha frente, fica a fazer-lhe companhia
enquanto bebe, Não consigo habituar-me à ideia de que você não existe, Olhe que
passaram sete meses, quanto basta para começar uma vida, mas disso sabe você
mais do que eu, é médico.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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