«Quando Baltasar entra em casa, ouve o murmúrio que vem da cozinha, é a
voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma, ora outra, mal se conhecem e têm tanto
para dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa
nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que essa conversa é que
segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras,
já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta, Deite-me a sua
bênção, minha mãe, Deus te abençoe, meu filho, não lhe falou Blimunda, não lhe
falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.»
José Saramago em Memorial do Convento
Este livro é um manancial inesgotável de beleza, de
dizeres, de saberes.
Mas fiquemo-nos pelas palavras com que Saramago, no
seu Discurso de Estocolmo, explicou o livro ao mundo:
«Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda
na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há
por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de
Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de
Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um
sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do
outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre
jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e
voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se
vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje,
ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São
três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram
as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de
um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de
assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos
bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o
que escondido estava... E também se aproxima uma multidão de milhares e
milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver
levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento,
as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres
sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a
ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar...
Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor,
graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós
Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está
ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que
seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa
de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se
não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Que assim seja.»
Legenda: capa de Memorial do Convento publicado
pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de José Mattoso.
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