sexta-feira, 12 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO


«O meu sapateiro tinha muitos amigos, mas as horas da visita variavam consoante a posição social de cada um. O médico nunca estava quando lá ia um pé mal calçado; o prior não passava da porta; os lavradores da terra evitavam encontrar-se com inimigos da estrema vizinha, e diziam coisas graves e profundas, ou bisbilhotices de meia-porta, enquanto ponderosamente iam remexendo nos bolsos do colete.
Só eu era um freguês de todas as horas.

José Saramago em Deste Mundo e do Outro, da crónica O Sapateiro Prodigioso.


Deste Mundo e do Outro, Janeiro de 1971, reúne crónicas publicadas em A Capital e no Jornal do Fundão.

É neste livro que estão publicadas as cartas que José Saramago escreveu sobre a avó Josefa e o avô Jerónimo e que, aquando do primeiro Discurso de Estocolmo da entrega do Prémio Nobel, utilizará, como esteio, no comovente discurso que, então, proferiu.

Depois da surpresa dos dois livros de poesia, ficava a saber que José Saramago era um cronista admirável.

«Bem sei que os tempos, aqui par nós, não vão para crónicas. Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos? São o que podem ser…»

«Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Josephville, se lhe quisermos dar um nome.»

«A história das pessoas é feita de lágrimas, alguns risos, umas tantas pequenas alegrias e uma grande dor final.»

«Estarmos vivos é já em si uma vitória. A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver.»

«Não sei o que cá faço, e é importante que o saiba. Mas mais importante é fazer.»

«O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»

«Ora, a vida é feita de pequenas e minúsculas tarefas. Escrever é uma delas.»

O velho livrinho da Arcádia está repleto de sublinhados.

Estes são alguns desses meus sublinhados.

Brilhantes sublinhados.

Por mister difícil, são escassos, entre nós, os verdadeiros cultores da crónica de jornal.

Saramago, com este livro, mostrava que era um cronista que valia a pena seguir.

E assim me aconteceu.

Ou como deixou escrito Mário Sérgio:

«Irei agora pôr Deste Mundo e do Outro naquele pedaço de estante onde vivem os livros que tenho de ver todos os dias, de tocar e folhear todos os dias e de ler nem que seja apenas um parágrafo.»

Legenda: capa de Deste Mundo e do Outro publicado pela Porto Editora.
A caligrafia da capa é da autoria da actriz Maria de Medeiros.

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