«O meu sapateiro tinha muitos amigos, mas as horas da visita variavam
consoante a posição social de cada um. O médico nunca estava quando lá ia um pé
mal calçado; o prior não passava da porta; os lavradores da terra evitavam
encontrar-se com inimigos da estrema vizinha, e diziam coisas graves e profundas,
ou bisbilhotices de meia-porta, enquanto ponderosamente iam remexendo nos
bolsos do colete.
Só eu era um freguês de todas as horas.
Deste Mundo e do Outro, Janeiro de 1971, reúne crónicas publicadas em A Capital e no Jornal do Fundão.
É neste livro que estão publicadas as cartas que José Saramago escreveu sobre a avó Josefa e o avô Jerónimo e que, aquando do primeiro Discurso de Estocolmo da entrega do Prémio Nobel, utilizará, como esteio, no comovente discurso que, então, proferiu.
Depois da surpresa dos dois livros de poesia, ficava a
saber que José Saramago era um cronista admirável.
«Bem sei que os
tempos, aqui par nós, não vão para crónicas. Crónicas, que são? Pretextos, ou
testemunhos? São o que podem ser…»
«Era uma vez um
homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio.
Josephville, se lhe quisermos dar um nome.»
«A história das
pessoas é feita de lágrimas, alguns risos, umas tantas pequenas alegrias e uma
grande dor final.»
«Estarmos vivos é já em si uma vitória. A vida é breve, mas cabe nela
muito mais do que somos capazes de viver.»
«Não sei o que cá faço, e é importante que o saiba. Mas mais importante
é fazer.»
«O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta,
examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra
negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre
ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e más. O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.»
«Ora, a vida é feita de pequenas e minúsculas tarefas. Escrever é uma
delas.»
O velho livrinho da Arcádia está repleto de sublinhados.
Estes são alguns
desses meus sublinhados.
Brilhantes
sublinhados.
Por mister difícil,
são escassos, entre nós, os verdadeiros cultores da crónica de jornal.
Saramago, com este livro, mostrava que
era um cronista que valia a pena seguir.
E assim me aconteceu.
Ou como deixou
escrito Mário Sérgio:
«Irei agora pôr Deste Mundo e do Outro naquele pedaço de estante onde
vivem os livros que tenho de ver todos os dias, de tocar e folhear todos os dias
e de ler nem que seja apenas um parágrafo.»
Legenda: capa de Deste Mundo e do Outro publicado
pela Porto Editora.
A caligrafia da capa é da autoria da actriz Maria de
Medeiros.
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