quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O PRAZER DO USO DO CORTA PAPEL


Os prazeres que nos reserva o uso do corta-papel são tácteis, auditivos, visuais e acima de tudo mentais. A progressão na leitura é antecedida por um gesto que atravessa a solidez material do livro para permitir o acesso à sua substância incorpórea. Penetrando por baixo das páginas, a faca sobe com ímpeto fazendo um corte vertical numa escorregadia sucessão de golpes que atacam as fibras uma a uma e as ceifam - com um crepitar alegre e amigo o bom do papel recebe este primeiro visitante, que anuncia inúmeros virar de páginas agitadas pelo vento ou pelo olhar -; maior resistência opõe a dobra horizontal, especialmente se for dupla, porque exige uma nada ágil acção contrária - aí o som é o de uma laceração sufocada, com notas mais graves. O bordo das folhas retalha-se revelando o seu tecido filamentoso; separa-se dele uma apara muito fina - chamada "caracol" - suave para a vista como a espuma das ondas na rebentação. O abrires caminho à espadeirada na barreira das folhas associa-se ao pensamento do tanto que a palavra encerra e oculta: avanças pela leitura adentro como por um denso bosque.
O romance que estás a ler desejaria apresentar-te um mundo corporal, denso, minucioso. Mergulhado na leitura, moves maquinalmente o corta-papel pela espessura do volume: a ler ainda não chegaste ao fim do primeiro capítulo, mas a cortar já estás muito mais adiante. E eis que, no momento em que a tua atenção está mais suspensa, viras a folha a meio de uma frase decisiva e te deparas com duas páginas em branco.

Italo Calvino em Se Numa Noite de Inverno UmViajante

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