Os prazeres que nos reserva o uso do corta-papel são tácteis,
auditivos, visuais e acima de tudo mentais. A progressão na leitura é
antecedida por um gesto que atravessa a solidez material do livro para permitir
o acesso à sua substância incorpórea. Penetrando por baixo das páginas, a faca
sobe com ímpeto fazendo um corte vertical numa escorregadia sucessão de golpes
que atacam as fibras uma a uma e as ceifam - com um crepitar alegre e amigo o
bom do papel recebe este primeiro visitante, que anuncia inúmeros virar de
páginas agitadas pelo vento ou pelo olhar -; maior resistência opõe a dobra
horizontal, especialmente se for dupla, porque exige uma nada ágil acção
contrária - aí o som é o de uma laceração sufocada, com notas mais graves. O
bordo das folhas retalha-se revelando o seu tecido filamentoso; separa-se dele
uma apara muito fina - chamada "caracol" - suave para a vista como a
espuma das ondas na rebentação. O abrires caminho à espadeirada na barreira das
folhas associa-se ao pensamento do tanto que a palavra encerra e oculta:
avanças pela leitura adentro como por um denso bosque.
O romance que estás a ler desejaria apresentar-te um mundo corporal,
denso, minucioso. Mergulhado na leitura, moves maquinalmente o corta-papel pela
espessura do volume: a ler ainda não chegaste ao fim do primeiro capítulo, mas
a cortar já estás muito mais adiante. E eis que, no momento em que a tua
atenção está mais suspensa, viras a folha a meio de uma frase decisiva e te
deparas com duas páginas em branco.
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