segunda-feira, 15 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO


«A polícia não pode meter na prisão todas as pessoas de quem desconfia. Aliás, o regime fascista encontrou uma boa maneira de resolver esse problema. Caxias é apenas uma prisão dentro doutra prisão maior, que é o país. É prático, como se vê. Em geral, os suspeitos circulam à vontade dentro da prisão maior; quando se tornam perigosos, passam para as prisões mais pequenas: Caxias, Peniche e outros lugares menos conhecidos.»

José Saramago em Manual de Pintura e Caligrafia.

Manual de Pintura e Caligrafia é o segundo romance de Saramago e, diga-se: passou completamente ao lado da crítica e do público leitor.

Mesmo depois de reeditado, não conseguiu furar esses muros de silêncio.

Saramago considerou-o o mais autobiográfico dos seus livros.


«O Manual de Pintura e Caligrafia é uma obra ímpar no género da literatura autobiográfica entre nós e oferece-nos, no seu conjunto, um semental de ideias e uma carta de rumos da ficção de José Saramago até à data.Nele se fundem as escritas de uma complexa e rica tradição literária e a experiência de um tempo vivido nos logros do quotidiano e das vicissitudes da história, que será a substância da própria arte.»

Luís de Sousa Rebelo no prefácio à 2ª edição de Manual de Pintura e Caligrafia.

Desde a leitura das primeiras páginas, fiquei seduzido e sempre perdido na sua nada fácil leitura.

Manual?

Um exercício de escrita?

Um pintor que escreve?

Um escritor que pinta?

«Observo-me a escrever como nunca me observei a pintar.»

Dirá ainda:

«Poderei escrever sempre, até ao fim da vida.»

Começa nestas páginas o estilo que Saramago aperfeiçoará constantemente ao longo da sua obra.

«Que quero eu? Primeiramente, não ser derrotado. Depois, se possível, vencer.»

E quase definitivo:

«Não sou já, não sou ainda, não sei que serei.»

Volta e meia regresso ao labirinto da sua leitura.

Para (re)encontrar gestos de homem-simples-observador, como este:

«O rico nunca vê, nunca repara, apenas olha, e acende os cigarros com o ar de quem esperaria que já viessem acesos: o rico acende o cigarro ofendido, isto é, o rico acende ofendido o cigarro, porque não há, ali, acaso, ninguém que lho acenda.»

Legenda: capa de Manual de Pintura e Caligrafia publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Júlio Pomar.

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