«O latifúndio tem às vezes pausas, os dias são indiferentes ou assim
parecem, que dia é hoje. É verdade que se morre e nasce como em épocas mais
assinaladas, que a fome não se distingue na necessidade do estômago e o
trabalho pesado em quase nada se aligeirou. As maiores mudanças dão-se pelo
lado de fora, mais estradas e mais automóveis nelas, mais rádios e mais tempo a
ouvi-los, entendê-los é outra habilidade, mais cervejas e mais gasosas, porém
quando o homem se deita à noite, ou na sua própria cama, ou na palha do campo,
a dor do corpo é a mesma, e muita sorte sua se não está sem trabalho. De
mulheres nem vale a pena falar, tão constante é o seu fado de parideiras e
animais de carga.»
José Saramago em Levantado do Chão
Maria Lúcia Lepecki
falou do mágico encanto deste livro, Luiz Pacheco escreveu que era «um dos mais extraordinários monumentos
literários com que fica a contar a nossa ficção pós-25 de Abril», Saramago
disse que o livro «é uma espécie de
descoberta e um ombro encostado à malta que vive no Alentejo.»
Gosto deste sincero ombro encostado à malta que vive no
Alentejo.
Como gostei, e ainda
o sinto, do abraço que o meu pai me deu por lhe ter impingido a urgência da sua
leitura. Ele já sabia das minhas andanças e simpatias saramaguianas, mas nunca
se abalançara à leitura de um dos seus livros, apesar de tanto lhe ter falado
no Manual de Pintura e Caligrafia.
Mas foi tiro e queda
e a partir dali era sempre ele que aparecia com os livros logo que eles surgiam
nos escaparates da livrarias.
São trezentas e
sessenta seis, as páginas da 1ª edição de Levantado
do Chão, histórias de luta, falas alentejanas - «Quando um alentejano se decide a falar ninguém o cala» -, fome e
amores.
Citação da
contracapa, escrita por Saramago:
«Um escritor é um
homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro,
quando terminasse: "Isto é um livro sobre o Alentejo." Um livro, um
simples romance, gentes, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes
fomes, as vitórias e os desastres, a aprendizagem da transformação, e mortes. É
portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais
merecida explicação. Leva como título e nome, para procurar e ser procurado
estas palavras sem nenhuma glória- «Levantado do Chão». Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores,
levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se
os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como
uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá
estou eu outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo.»
Pormenor do livrinho O Essencial sobre José Saramago de Maria
Alzira Seixo:
«Levantado do Chão é,
antes de mais, a epopeia dos trabalhadores alentejanos, a elucidação da reforma
agrária, a narrativa dos casos, conhecidos ou não, que fizeram do Alentejo um
mar seco de carências, privações, torturas, sangue e uma impossibilidade de
viver. O relato do narrador (que não se dá na primeira pessoa narrativa mas
curiosamente se trata a si próprio como «o narrador», na terceira pessoa- o que
implica desde logo um efeito de sobredistanciação em relação ao modo brechtiano
de implicação do leitor) ocupa todo o século, com incursões esporádicas e
fabulares pelo passado que vão até ao século XV, mas detém-se sobretudo na
série familiar que, em três gerações (Domingos Mau-Tempo, o seu filho João e
seus netos António e Gracinda, esta casada com a outra personagem central,
António Espada), vai conquistar a terra para as capacidades do seu trabalho,
vai arrancar-se à vergonha das humilhações, vai preencher a fome de uma falta
total. O romance é, assim, a história de um fatalismo desenganado,
constantemente combatido pelo apontar da esperança dificilmente feita luta: os
primeiros lampejos de ilusão surgindo com a República (e as poucas letras que a
João Mau-Tempo ela dá - o único que saberá ler, antes da neta Gracinda, que aprenderá do namorado), logo esmagados pela
justaposição idêntica de um patronato de linhagem que a GNR tem por missão
apoiar; as perplexidades da guerra - a primeira, a de Espanha, a libertação da
Europa e o recrudescimento da repressão policial em função da organização de
uma consciência política a cimentar-se -, as reinvindicações do pós-guerra, as
prisões brutais, os assassinatos, a inquietação dos anos sessenta e o advento
do 25 de Abril (narrativamente marginalizado, significante máximo de uma
centralização cultural e política que deixa os escusos recantos do País no
costumado abandono), o despertar final das consciências, empurrado pelo
sofrimento, pela vontade e por uma informação inevitável - os jornais, a rádio
- culminando no ponto máximo desta gesta que é o da ocupação das terras, a
constituição das cooperativas, esse «dia levantado e principal», Romance
político, pois; e sociocultural, no sentido mais pleno destes termos. Mas
romance de uma nostalgia bucólica que só se não consente pelo impossível
prosseguimento de uma atmosfera de brandura, romance de amores rústicos e
mágicas ancestrais, romance que é um hino à natureza e um cântico da terra que
deplora seus fins de tormentos dos humanos, gente feita instrumento, que custa
a erguer-se do utensílio em que se tornou, mas que a crença no trabalho, no
tempo e na vida alçam finalmente à luz redonda do dia.»
Um livro pensado
durante dois anos, escrito em cinco meses, o começo numa escrita normal, «como toda a gente faz», e depois, «a folhas vinte e quatro ou vinte e cinco», algo
começa a suceder uma das coisas mais bonitas que me aconteceram»
e fica o autor perante a reinvenção da sua linguagem, a linguagem saramaguiana.
Legenda: capa de Levantado
do Chão publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Mia Couto.
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