quinta-feira, 4 de outubro de 2018

REGISTO


Há viagens caídas no canteiro da memória, como
plantas arrancadas pelo vento. Percorro-as com os olhos
do passado, e cada uma tem o nome de uma cidade,
de um continente, de rostos que se atravessaram à minha
frente numa praça, num café, numa esquina que não
atravessei. Essas plantas cresceram numa terra feita
de listas telefónicas desfolhadas com os dedos
húmidos de um medo nocturno. Nas suas folhas morreu a cor
de muitos olhos, entrevistos num acaso de encontros,
dos mais verdes aos mais azuis, ou os simples olhos escuros
que fixei até ao mais fundo do que tinham para me dizer. E
os seus caules quebrados são tristes como as cartas
a que não dei resposta, como a cadeira que ficou vazia
na mesa em que jantei sozinho, como os quartos de hotel
com janelas que davam para o escuro saguão das vidas
que se gastaram por trás de persianas corridas. O que fiz
a tantos guias que nunca li, aos endereços que nunca
me saíram de dentro do bolso, aos números
de telefone de que não tomei nota? Por vezes, tento
dar vida a essas plantas que morreram. Deito-lhe
a água de lágrimas antigas, despejo sobre as suas raízes
o álcool de copos bebido até meio, e vejo-as
animarem-se como o rosto cuja palidez ganhou
um fulgor de sol no dia de névoa. Mas
elas morrem de novo; e recomeço a viagem, para
que o vento da memória me obrigue a fechar
os mapas que me deram, para nunca saber o caminho.

Nuno Júdice, publicado no JL, 29 de Maio de 2013.

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