«A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do
termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas a. Ora, de
uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios
laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não
que desabam. Mas verdade é que desabam chuvadas, digo também, ou lembro já,
para que não aconteça cair em minhas próprias armadilhas: Assim desabam
bátegas, que é apenas modo diferente de dizer o mesmo, não poderiam afinal
desabar cadeiras, mesmo abas não tendo? Ao menos por liberdade poética? Ao
menos por singelo artifício de um dizer que se proclama estilo? Aceite-se então
que desabem cadeiras, embora seja preferível que se limitem a cair, a tombar, a
ir abaixo. Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está,
mas caindo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras,
que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira. Se o mesmo dissessem,
se aos grupos se juntassem por homologia, então a vida poderia ser muito mais
simples, por via de redução sucessiva, até à ainda também não simples
onomatopeia, e por aí fora seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que
chamaríamos o sinónimo geral ou omnivalente. Não é sequer onomatopéia, ou não é
formável ela a partir deste som articulado (que não tem a voz humana sons puros
e portanto inarticulados, a não ser talvez no canto, e mesmo assim conviria a
ouvir de mais perto), formado na garganta do tombante ou cadente, embora não
estrela, palavras ambas de ressonância heráldica que estão designando agora
aquele que desaba, pois não se achou correcto juntar a este verbo a desinência
paralela (ante) que perfaria a escolha e completaria o círculo. Desta maneira
fica provado que não é perfeito o mundo.»
José Saramago em
Objecto Quase
Porque o homem não é
um objecto, disse algures José Saramago, e também admitiu que Objecto Quase não é de leitura fácil
Um livro de seis-histórias-seis, uma delas extraordinária, A Cadeira, que gira à volta do dia em que o ditador de Santa Comba bateu com a cabeça nas pedras da esplanada do Forte de Santo António e aí iniciou o caminho para viagem sem regresso, ocorrida em Julho de 1970, prolegómenos da futura mudança de um país.
«Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.»
Legenda: capa de Objeto
Quase publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de
João Tordo.
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