terça-feira, 2 de outubro de 2018

BOLO DE ARROZ FUMADO NO TÚNEL DO ROSSIO


Quando as senhoras locomotivas, num excitante cerimonial de cornetas, bandeiras e apitos, moviam êmbolos e rodas (oleados de fresco e passados a desperdício em tudo o que, metal, podia rebrilhar) da Estação do Rossio para a de Campolide e, daí, para as estações e apeadeiros do longo percurso que nos levaria às férias grandes no Norte, nós, os felizes rapazitos, metíamos cara ao túnel e esperávamos, sobressaltados, que a nuvenzinha branca que a máquina, cheia de prosápia, ia soprando para o lado, sofresse o primeiro esmagamento ao começar a composição a entrar no fuliginosos abismo horizontal. Não raro, mão vigilante nos puxava bruscamente das janelas para os assentos, para evitar in extremis, que tivéssemos o destino que tantos outros haviam tido, os pobrezinhos! Janelas fechadas era como o trânsito se fazia no túnel.
Calor, fumo, vapor de água, cheios de tabaco, de suborreco, de cabedal, de pergamoide, de brilhantinas que trinavam como passarinhos, de crianças de colo a bolsar em honestos regaços, de batôns apaixonadamente traçados em bocas que nunca coincidiam com esses patéticos desenhos, cheiros humanos, no ideal, na roupa ou no corpo, tudo ali se misturava, crescia, abafava, enjoava durante o estirado percurso subterrâneo. Pelas vidraças, leitosas, escorriam gotas. Nós tentávamos sempre ver para fora, para o escuro. Às vezes misturavam-se silvos estrídulos no túnel e uma composição descendente entrava, como um fugaz cinema louco, no nosso campo de visão.
Em Campolide abria-se a janela e respirava-se um ar puro que cheirava a carril triturado. E também deitava fora o bolo de arroz que, por esquecimento, se conservava apertado na mão. Sabia a fumo, ao fumo adocicado do túnel do Rossio…

Alexandre O’Neill em Uma Coisa em Forma de Assim

Legenda: túnel da estação do Rossio, fotografia encontrada no blogue Restos de Colecção.

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