Quando as senhoras locomotivas, num excitante cerimonial de cornetas,
bandeiras e apitos, moviam êmbolos e rodas (oleados de fresco e passados a desperdício
em tudo o que, metal, podia rebrilhar) da Estação do Rossio para a de Campolide
e, daí, para as estações e apeadeiros do longo percurso que nos levaria às
férias grandes no Norte, nós, os felizes rapazitos, metíamos cara ao túnel e
esperávamos, sobressaltados, que a nuvenzinha branca que a máquina, cheia de
prosápia, ia soprando para o lado, sofresse o primeiro esmagamento ao começar a
composição a entrar no fuliginosos abismo horizontal. Não raro, mão vigilante
nos puxava bruscamente das janelas para os assentos, para evitar in
extremis, que tivéssemos o destino que
tantos outros haviam tido, os pobrezinhos! Janelas fechadas era como o trânsito
se fazia no túnel.
Calor, fumo, vapor de água, cheios de tabaco, de suborreco, de cabedal,
de pergamoide, de brilhantinas que trinavam como passarinhos, de crianças de
colo a bolsar em honestos regaços, de batôns apaixonadamente traçados em bocas
que nunca coincidiam com esses patéticos desenhos, cheiros humanos, no ideal,
na roupa ou no corpo, tudo ali se misturava, crescia, abafava, enjoava durante
o estirado percurso subterrâneo. Pelas vidraças, leitosas, escorriam gotas. Nós
tentávamos sempre ver para fora, para o escuro. Às vezes misturavam-se silvos
estrídulos no túnel e uma composição descendente entrava, como um fugaz cinema
louco, no nosso campo de visão.
Em Campolide abria-se a janela e respirava-se um ar puro que cheirava a
carril triturado. E também deitava fora o bolo de arroz que, por esquecimento,
se conservava apertado na mão. Sabia a fumo, ao fumo adocicado do túnel do
Rossio…
Alexandre O’Neill em Uma Coisa em Forma de Assim
Legenda: túnel da
estação do Rossio, fotografia encontrada no blogue
Restos de Colecção.
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