O Dia Cinzento e Outros Contos
Mário Dionísio
Desenho inédito de
Júlio Pomar
Obras de Mário
Dioníssio nº 2
Publicações
Europa-América, Lisboa, 1967
Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas
oficinas, atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as
paragens dos eléctricos, que tinham sido planeadas quando não havia nas lojas,
nos escritórios e nas oficinas tanta gente, ficavam repletas dum momento para o
outro. Nos largos passeios das grandes praças havia encontrões. As pessoas de
aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e não viam remédio senão
receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os eléctricos
apinhavam-se na linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados
até aos estribos e por fora dos estribos, atrás, no salva-vidas, com as tais
centenas de pessoas que saltavam àquela hora apressadamente das lojas, dos
escritórios, das oficinas. Além disso, nos dias bonitos como aquele, as ruas da
Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, às cinco horas, pelas
lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qualquer
maneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só
voltavam a casa à hora do jantar.
A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas penduradas no eléctrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam só cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco correctos e onde esses mesmos homenzinhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se uma pessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava até chegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também?
O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens correctos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se.
A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas penduradas no eléctrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam só cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco correctos e onde esses mesmos homenzinhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se uma pessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava até chegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também?
O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens correctos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se.
(Excerto do conto Assobiando à Vontade)
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