Ao longe, a morte
acena a Sam Shepard e ele fica com o entendimento que os seus leitores, ele
próprio, merecem um último olhar sobre tabernas de cidades de fronteira ou
perdidas no meio do deserto, terras de apaches e saguaros, sonhos e
desventuras, olhar o céu, senti-lo perto de si, adormecer e acordar ao som do
cântico dos tordos, uma espécie de melancolia, deitado à espera que alguém o
encontre, algo de muito seu que lhe faça companhia na última viagem.
«Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que o
presente é o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado por pessoas muito
sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o passado
apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.»
Quem é que Sam espia?
Quem é que espia Sam?
Nem ele se lembra, ou
sabe.
«Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da estrada, é difícil
dizer qual a idade dele por causa do alpendre fechado com rede a toda a volta.
Por causa dos óculos escuros a toda à volta. Roxos. O Mascarilha. Bandido
mascarado. Não sei o que está a proteger. Está efectivamente dentro de um
alpendre fechado, com insectos que zumbem, aves que chilreiam, todo o tipo de
coisas estivais que vão ocorrendo, no exterior – borboletas, vespas, etc. -,
mas é muito difícil dizer com exactidão a esta distância e a idade que tem. O
boné de beisebol, as jeans encardidas, o colete velho.»
Sam Shepard começou a
pensar no livro no ano de 2016.
Escreveu-o depois em
rascunhos manuscritos já que a esclerose lateral amiotrófica que o atacou,
impedia-o de dactilografar. Quando já não conseguia escrever à mão, passou a
gravar os textos e os filhos faziam a transcrição para papel.
Patti Smith, amiga e
antiga companheira apoiou-o na edição do manuscrito, quem mais o poderia fazer,
ela que é uma eterna frequentadora de sombras, fragilidades várias, visões de
cemitérios perdidos pelos mundos?
Sam fez a revisão do
livro e ditou a versão final alguns dias antes de morrer, a 27 de Julho de
2017. Tinha 73 anos.
«A Lua está a ficar cada vez maior. A Lua dos Morangos (lua cheia do
mês de Junho, Strawberry Moon, segundo nota do tradutor). Iluminando a nossa
pequena trupe. A Lua Cheia. Dois filhos e o pai, com toda agente atrás.
Seguindo pelo meio de East Water Street, e agora a noite está mesmo clara. A
lua cheia. Conseguimos e coxeámos pelas escadas acima. Ou melhor, eu coxeei. Os
meus filhos não coxearam, eu coxeei.»
Nas suas breves
noventa e sete páginas, um livro desesperado mas um belíssimo livro.
Não sabemos o que
pensar daquelas palavras dos seus últimos dias, não sabemos o que fazer quando
fechamos o livro e o deixamos suspenso entre as mãos.
«Aliás, já
estou vazio. Do género de uma concha», escreveu Sam, no aproximar da página
final quando sente que já não sabe como suportar a monotonia.
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