Provàvelmente
Provàvelmente, o
campo demarcado
Não basta ao coração,
nem o exalta:
Provàvelmente, o
traço da fronteira
Contra nós o
riscámos, amputados.
Que rosto se desenha
e se promete?
Que viagem esquecida nos
aguarda?
São asas (que só duas
fazem voo),
Ou solitário arder de
labareda?
José Saramago em Provàvelmente Alegria
Depois de Os Poemas Possíveis, este é a segunda intervenção
poética publicada por Saramago.
À poesia só voltará em 1975 com o Ano de 1993.
E não mais livros de
poemas publicará, pois um poeta mediano se considerava.
Mas este Protopoema alguma vez se pode considerar um poema mediano?
Do fundo da minha
mais que provável ignorância, digo que não.
Protopoema
Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me parece solto. Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas. Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. Continuo a puxar, não já a memória apenas, mas o próprio corpo do rio. Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre, e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos. Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória. Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração. Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas. Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco. Imóvel, espero que toda a água banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas. Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam. Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me parece solto. Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas. Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. Continuo a puxar, não já a memória apenas, mas o próprio corpo do rio. Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre, e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos. Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória. Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração. Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas. Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco. Imóvel, espero que toda a água banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas. Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam. Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
Maria Alzira Seixo
em O Essencial Sobre José Saramago:
«Provavelmente Alegria prolonga, como referimos, a
problemática poética exposta em Os Poemas Possíveis – mas anuncia igualmente
vertentes novas e fecundas no itinerário do autor. « Haverá o grande silêncio
primordial quando as mãos se juntarem às mãos. Depois saberei tudo.». esta
preocupação gnosiológica assente na comunicação plena e indivisível dos homens
busca a sua expressão na lisura una que a fome, inconsútil e profunda, nada e
criada, miragem eterna como penosa construção constante: «cada verso uma
pedra», um dorso de pedra que se arranque/Do poema profundo, dos ossos do
chão». Uma construção do homem que é, desde logo, o sentido fundamental de toda
a obra de José Saramago.»
Legenda: capa de Provavelmente Alegria publicado pela Porto Editora.
A caligrafia da
capa é da autoria do escritor Nuno Júdice.
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