Já foi ao hospital, já percorreu os acampamentos, já cruzou a feira em
todos os sentidos, agora desceu à esplanada rumorosa, mergulha na profunda
multidão, assiste aos exercícios, aos trabalhos práticos da fé, as orações
patéticas, as promessas que se cumprem em arrasto de joelhos, com as rótulas a
sangrar, amparada a penitente pelos sovacos antes que desmaie de dor e
insofreável arroubo, e vê que os doentes foram trazidos do hospital, dispostos
em alas, entre eles passará a imagem da Virgem Nossa Senhora no seu andor
coberto de flores brancas, os olhos de Ricardo Reis vão de rosto em rosto,
procuram e não encontram, é como estar num sonho cujo único sentido fosse
precisamente não o ter, como sonhar com uma estrada que não principia, com uma
sombra posta no chão sem corpo que a tivesse produzido, com uma palavra que o
ar pronunciou e no mesmo ar se desarticula. Os cânticos são elementares, toscos,
de sol-e-dó, é um coro de vozes trémulas e agudas, constantemente interrompido
e retomado, A treze de Maio, na Cova da Iria, de súbito faz-se um grande
silêncio, está a sair a imagem da capelinha das aparições, arrepiam-se as
carnes e o cabelo da multidão, o sobrenatural veio e soprou sobre duzentas mil
cabeças, alguma coisa vai ter de acontecer. Tocados de um místico fervor, os
doentes estendem lenços, rosários, medalhas, com que os levitas tocam a imagem,
depois devolvem-nos ao suplicante, e dizem os míseros, Nossa Senhora de Fátima
dai-me vida, Senhora de Fátima permiti que eu ande, Senhora de Fátima permiti
que eu veja, Senhora de Fátima permiti que eu ouça, Senhora de Fátima sarai-me,
Senhora de Fátima, Senhora de Fátima, Senhora de Fátima, os mudos não pedem,
olham apenas, se ainda têm olhos, por mais que Ricardo Reis apure a atenção não
consegue ouvir, Senhora de Fátima põe neste meu braço esquerdo a tua mirada e
cura-me se puderes, não tentarás o Senhor teu Deus nem a Senhora Sua Mãe, e, se
bem pensasses, não deverias pedir, mas aceitar, isto mandaria a humildade, só
Deus é que sabe o que nos convém. Não houve milagres. A imagem saiu, deu a
volta e recolheu-se, os cegos ficaram cegos, os mudos sem voz, os paralíticos
sem movimento, aos amputados não cresceram os membros, aos tristes não diminuiu
a infelicidade, e todos em lágrimas se recriminam e acusam, Não foi bastante a
minha fé, minha culpa, minha máxima culpa. Saiu a Virgem da sua capela com tão
bom ânimo de fazer alguns feitos milagrosos, e achou os fiéis instáveis, em vez
de ardentes sarças trémulas lamparinas, assim não pode ser, voltem cá para o
ano. Começam a tornar-se compridas as sombras da tarde, o crepúsculo
aproxima-se devagar, também ele em passo de procissão, aos poucos o céu perde o
vivo azul do dia, agora é cor de pérola, porém naquele lado de além, o sol, já
escondido por trás das copas das árvores, nas colinas distantes, explode em
vermelho, laranja e roxo, não é rodopio, mas vulcão, parece impossível que
tudo aquilo aconteça em silêncio no céu onde o sol está. Daqui a pouco será
noite, vão-se acendendo as fogueiras, calaram-se os vendilhões, os pedintes
contam as moedas, debaixo dessas árvores alimentam-se os corpos, abrem-se os
farnéis desbastados, morde-se o pão duro, leva-se o pipo ou a borracha à boca
sedenta, este é o comum de todos, as variantes de conduto são conforme as
posses.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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