sexta-feira, 26 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO


«Na Feira aparece uma pessoa a comprar todos os meus livros. Põe-nos todos diante de mim para que os autografe, os grossos e os finos, os caros e os baratos, trinta e tal contos de papel, conforme vim a saber depois, e o que me desconcerta é que o homem não é um convertido recente ao saramaguismo, um adepto de fresca data, um neófito disposto às mais loucas ousadias, pelo contrário, fala do que de mim leu com à vontade e discernimento. Resolvo-me a perguntar-lhe a razão da ruinosa compra, e ele responde simplesmente, com um sorriso onde aflorou uma rápida amargura: “Tinha-os todos, mas ficaram na outra casa.” Compreendi. E depois de ele se ir embora, ajoujado sob a carga, pus-me a pensar na importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas…»

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, 1º Volume.

Os Cadernos de Lanzarote são a parte borbulhosa da obra de José Saramago.

Logo a abrir, o autor diz ao que vem:

«Este livro, que vida havendo e saúde não faltando terá continuação, é um diário. Gente maliciosa vê-lo-á com um exercício de narcisismo a frio, e não serei eu quem vá negar a parte de verdade que haja no sumário juízo, se o mesmo tenho pensado algumas vezes perante outros exemplos, ilustres esses, desta forma particular de comprazimento próprio que é o diário.»

Torcato Sepulveda no Público de 16 de Abril de 1994:

«Cadernos de Lanzarote” assemelha-se a um guía das viagens do autor pelo mundo fora, porque o convidam muito para falar sobre as suas ideias. Ainda assim, isso poderia ajudar-nos a entender a obra de Saramago, se ele nos transmitisse aquilo que disse nesses colóquios aos seus ouvintes. Mas o que lá está limita-se, quase sempre, a comunicar-nos que ocorreram sucessos, que os estrangeiros o estimam, enquanto em Portugal não o amam.»

António Tabucci no JL, 4 de Janeiro de 1995:

“José Saramago, que diz ter ido procurar a solidão nas Ilhas Canárias, é o menos solitário de todos nós. O seu “Diário” desenrola-se entre jantares elegantes, editores internacionais, cocktails, recepções nas embaixadas e citações de elogios à sua pessoa.
Como bom novo-rico, Saramago, impante de orgulho do seu renome internacional, exibe-o qual troféu, assim como os caçadores nos romances de Hemingway exibem a cabeça de uma gazela.
Um médico da minha aldeia, uma espécie de médico filósofo, discípulo de Hipócrates e Galeno, disse-me recentemente uma coisa que me deu que pensar: os escritores quando envelhecem, devem ter cuidado com duas hipertrofias, a do ego e da próstata. Não conheço o estado da próstata de Saramago, mas a sua hipertrofia do ego, é evidente neste “Diário” que anda à volta do seu umbigo.»


Ainda Saramago:

Na verdade, terá de vir procurar-me nestas crónicas quem verdadeiramente me quiser conhecer.

Contracapa do 1º volume dos Cadernos de Lanzarote:

«Contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia.»

Cadernos de Lanzarote


1º volume: Março de 1994
2º volume: Março de 1995
3º volume: Março de 1996
4º volume: Março de 1997
5º volume: Outubro de 1998.

«A pasta Cadernos de Lanzarote estava no computador de José Saramago, e sempre que Pilar del Río lá entrava pensava que continha apenas os cadernos que já estavam publicados. Mas, no final de Fevereiro — quando estava à procura de uma referência a uma determinada conferência, a pretexto do livro que reúne conferências e discursos públicos de José Saramago, e que o seu biógrafo Fernando Gómez Aguilera, autor do livro e curador da exposição José Saramago. A Consistência dos Sonhos, está a organizar —, a viúva do escritor fez o que nunca tinha feito. Clicou na pasta e deparou-se com: caderno 1, caderno 2, caderno 3, caderno 4, caderno 5 e caderno 6…»

Explicação pública de Pilar del Rio.

Esse 6º Volume, Último Caderno de Lanzarote, foi agora publicado.

Num destes dias falaremos desse Diário, escrito no ano em que foi atribuído a José Saramago o Nobel da Literatura.

Legenda: capa de  Cadernos de Lanzarote I publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria da pintora Graça Morais.

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