A imagem, que
não vemos, tanto quanto se sabe ninguém a registou, é a de um homem, no cinzentismo
do enorme Aeroporto de Frankfurt, a caminho do avião que o levará a casa,
gabardina no braço, uma mala na mão, e será o tempo de uma colaboradora da
Ibéria, correr no seu encalço para lhe dizer que era o novo Prémio Nobel da
Literatura.
Esse homem, que
andou sempre descalço até aos 14 anos, dirá dias depois, num comovente discurso:
«A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes
conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz
que elas tiveram. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.»
Vinte anos se
passaram.
A alegria de
todos aqueles que a quiseram sentir, não esmoreceu.
Bem pelo
contrário.
E nas imagens,
que também ninguém registou, sabemos que nas noites quentes de Verão, depois da
ceia, o avô dizia-lhe:
«José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.
E enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com
as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições,
assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra,
palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha
desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.
Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo
era senhor de toda a ciência do mundo.»
Ali, naquelas
noites, outras noites, terão nascido todas as personagens que encheram o mundo
dos livros de José Saramago, fizeram dele a pessoa que sempre foi, que uns amam,
outros odeiam. mas a que não se pode ficar indiferente.
«Em certo sentido poder-se-á dizer que, letra a letra,
palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente,
a implantar no homem que fui as personagens que criei.»
E, servindo-se
do seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, em final de discurso, dirá «que
a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso
mundo».
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