segunda-feira, 8 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO


A imagem, que não vemos, tanto quanto se sabe ninguém a registou, é a de um homem, no cinzentismo do enorme Aeroporto de Frankfurt, a caminho do avião que o levará a casa, gabardina no braço, uma mala na mão, e será o tempo de uma colaboradora da Ibéria, correr no seu encalço para lhe dizer que era o novo Prémio Nobel da Literatura.

Esse homem, que andou sempre descalço até aos 14 anos, dirá dias depois, num comovente discurso:

«A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiveram. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.»

Vinte anos se passaram.

A alegria de todos aqueles que a quiseram sentir, não esmoreceu.

Bem pelo contrário.

E nas imagens, que também ninguém registou, sabemos que nas noites quentes de Verão, depois da ceia, o avô dizia-lhe:

«José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.
E enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.
Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.»

Ali, naquelas noites, outras noites, terão nascido todas as personagens que encheram o mundo dos livros de José Saramago, fizeram dele a pessoa que sempre foi, que uns amam, outros odeiam. mas a que não se pode ficar indiferente.

«Em certo sentido poder-se-á dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei.»

E, servindo-se do seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, em final de discurso, dirá «que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo».

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