«Os jornais de todo o mundo publicaram, alguns a toda a largura da
primeira página, a histórica fotografia que mostrava a península, se
definitivamente não deveremos passar a chamar-lhe ilha, ali quieta no meio do
oceano, mantendo, com milimétrica aproximação, a sua posição em relação aos
pontos cardeais por que se rege e orienta o orbe, o Porto tão ao norte de
Lisboa, como sempre esteve, Granada ao sul de Madrid desde que Madrid nasceu, e
o resto pela mesma conhecida conformidade. A potência dos jornalistas encontrou
vazão quase exclusiva na armação estentórea dos títulos, porquanto os segredos
da deslocação geológica, melhor dizendo, o enigma tectónico, continuavam por
desvendar, tão indecifráveis hoje como no primeiro dia. Felizmente, a pressão
da chamada opinião pública baixara, o vulgo deixara de fazer perguntas, bastava-lhe
o estímulo das sugestões directas e indirectas suscitadas pelas formidáveis
parangonas. Nasceu a Nova Atlântida, No Xadrez Mundial Moveu-se Uma Pedra, Um
Tralo De União Entre A América E A Europa, Entre A Europa E A América Um Pomo
De Discórdia, Um Campo De Batalha Para O Futuro, mas o título que maior
impressão causou produziu-o um jornal português, foi assim, Precisa-se Novo Tratado
de Tordesilhas, é realmente a simplicidade do génio, o autor da ideia olhou
para o mapa e verificou que, mais milha menos milha, a península estaria posta
sobre o que fora a linha que naqueles tempos gloriosos, dividira o mundo em
duas partes, pataca a mim, pataca a ti, e a mim pataca.»
José Saramago em A Jangada de Pedra
O livro está na lista
dos menos amados romances de José Saramago.
Sempre se manifestou
como um iberista.
Escreveu para O diário um artigo: «O (meu) Iberismo»
que terminava assim:
«O iberismo está morto? Sim. Poderemos viver sem um iberismo? Não
creio.»
A ideia do livro é
interessante: a Península Ibérica desprendendo-se da Europa, navegando
Atlântico fora a vogar para o seu lugar próprio entre a América do Sul e a
África Central.
«A Península Ibérica tem pouco a ver com a Europa no plano cultural»,
disse Saramago, pouco dado ao europeísmo decretado por Bruxelas ou quem que
seja.
Há em A Jangada de Pedra um aspecto curioso:
Em Uma Longa Viagem com José Saramago, o
autor diz a João Céu e Silva, que em A
Jangada de Pedra existe a única referência autobiográfica que decididamente
se lembra de ter colocado num dos seus livros.
João Céu e Silva
há-de perguntar a Pilar del Rio:
«Quando leu os parágrafos de “A Jangada de Pedra” – e essa é a única
parte da obra em que se está próximo do autobiográfico – que descrevem o vosso
encontro o que é que sentiu.»
Pilar responde-lhe:
«Quando os li reconheci a situação, mas não disse nada porque sei que o
Saramago não deixa passar nada da sua vida privada para os livros. Calei-me e
esperei que o José mo reafirmasse.»
As palavras
encontram-se na pág. 119 de A Jangada de
Pedra:
«Tem ali uma senhora à sua espera. Parou José à entrada da sala, viu
uma mulher nova, uma rapariga, só pode ser esta, não há aqui outra pessoa,
apesar de estar na contraluz dos cortinados das janelas parece simpática, ou
mesmo bonita, veste calças e casaco azuis, de um tom que deve ser anil, tanto
pode ser jornalista como não, mas ao lado da cadeira onde se senta tem uma
pequena mala de viagem e sobre os joelhos um pau nem pequeno nem grande, entre
um metro e um metro e meio, o efeito é perturbador, uma mulher assim vestida
não se passeia pela cidade de pau na mão, Jornalista não será, pensou José
Anaíço, pelo menos não estão à vista os instrumentos do ofício, bloco de papel,
esferográfica, gravador.
A mulher levantou-se, e este gesto inesperado, pois está dito que as
senhoras, segundo o manual de etiquetas e boas maneiras, devem esperar nos
lugares que os homens se aproximem e as cumprimentem, então oferecerão a mão ou
darão a face, de acordo com a confiança e o grau de intimidade e sua natureza,
e farão o sorriso da mulher, educado, ou insinuante, ou cúmplice, ou revelador,
depende. Este gesto, talvez não gesto, mas o estar ali, a quatro passos,
levantada uma mulher esperando, ou, em vez disso, a súbita consciência de se
ter suspendido o tempo enquanto não for dado o primeiro, é verdade que o
espelho é testemunha, mas de um momento anterior, no espelho José Anaíço e a
mulher ainda são dois estranhos, deste lado não, aqui, porque vão conhecer-se,
conhecem-se já. Este gesto, este gesto de que antes não se pôde dizer tudo, fez
mover-se o chão de tábuas como um convés, o arfar de um barco na vaga, lento e
amplo, esta impressão não é confundível com o conhecido tremor de que fala Pedro
Once, não vibram, de José Anaíço os ossos, mas todo o seu corpo sentiu, física
e materialmente sentiu, que a península, por costume e comodidade de expressão
ainda assim chamada, de facto e de natureza vai navegando, só o saiba por
observação exterior, agora é por sua sensação própria que o sabe.»
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