segunda-feira, 22 de outubro de 2018

NÃO ERA UM SINAL DE PRISIONEIRO


Hoje vi uma mão sair de uma janela da prisão, na direcção do mar. Eu andava a passear pelo paredão do porto, como é meu costume, chegando até às traseiras da velha fortaleza. A fortaleza está toda encerrada dentro das suas muralhas oblíquas; as janelas, defendidas por gradeamentos duplos ou triplos, parecem tapadas. Mesmo sabendo que aqui estão encerrados os presos, sempre vi a fortaleza como um elemento da natureza inerte, do reino mineral. Por isso a aparição da mão espantou-me como se tivesse saído da rocha. A mão não estava numa posição natural; suponho que as janelas estão situadas no alto das celas e encravada na muralha; o preso deve ter realizado um esforço de acrobata, aliás de contorcionista, para passar o braço por entre as grades de modo a fazer despontar a mão ao ar livre. Não era um sinal de prisioneiro, nem para mim nem para qualquer outro; pelo menos, não o tomei como tal; aliás nessa altura nem pensei de modo nenhum nos presos; diria que a mão me pareceu branca e fina, uma mão não diferente das minhas, em que nada indicava a rudeza que se espera de um condenado. Para mim foi como um sinal que vinha da pedra; a pedra queria advertir-me de que a nossa substância era comum e por isso ficaria algo do que constitui a minha pessoa, não se perderia com o fim do mundo: ainda será possível uma comunicação no deserto falto da vida, privado da minha vida e de todas as minhas lembranças. Falo das primeiras impressões registadas, que são as que contam.

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