sexta-feira, 19 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO


Damião de Góis: Sem dúvida são melhores os caminhos rectos, mas esses não os há na vida das nações nem nos interesses dos paços e dinastias. A vossa obra será publicada, Luiz Vaz, mas só quando, claramente a balança pender para um lado ou para outro.
Luís de Camões: Porém o livro não será diferente do que é.
Damião de Góis: A diferença estará nos olhos que o lerem. E a parte que ficar vencedora fará que seja o livro lido com os olhos que mais lhe convierem.
Diogo do Couto: E a parte vencida, que fará?
Damião de Góis: Ficará esperando a sua vez de ler e fazer doutra maneira.
Luís de Camões: Eu sei o que escrevi.
Damião de Góis: Sabereis, não o duvido. Mas também eu sabia o que escrevera na segunda parte do meu livro Sobre a fé, costumes e religião dos Etíopes, e não cuidei que tivesse o santo Ofício motivos para determinar que ele fosse apreendido na alfândega de Lisboa.

José Saramago em Que Farei Com Este Livro?

No dizer de Eugénio de Andrade «de Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu mais pobre ainda.»

A partir daqui cada um que se sirva.

No caso de José Saramago serviu-se muito bem e com Que Farei Com este Livro? constrói, inventa uma excelente peça de teatro, a sua segunda experiência na matéria.

O livro são os caminhos que se foram construindo para tratar da composição e publicação de Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões.

«Se eu fosse esmolar pelas ruas e praças talvez me dessem dinheiro para comer. Mas não mo dariam se eu dissesse que o destinava a pagar ao livreiro que me imprimisse o livro.»

José Saramago teatraliza, numa corte rodeada de frades, outros, tantos, religiosos, fidalgos, fidalguinhos e afins, pouco ou nada dados a leituras, a luta de Camões para a publicação do seu livro.

«Assim fica entendido que não saibais vós de Luís Vaz. Poeta é, o maior que há em Portugal, e sem outros bens que o seu engenho.»

A censura da ditadura salazarista como herdeira do Santo Ofício e a que Sarmago dá um andamento crítico muito seu. Portugal regista na sua história largos séculos de censura. Às palavras, ao pensamento.

Uma noite, tempos salazarentos, Luís Filipe Costa impedido de claramente dizer que Palma Inácio, dirigente da Luar - Liga de Unidade de Acção Revolucionária, tinha sido preso da Pide, terminou o noticiário no Rádio Clube Português:

Felizmente há Luar!

Legenda: capa de  Que Farei Com Este Livro? publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Carlos do Carmo.

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