segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A VIDA NÃO PASSA DE UMA TROCA DE CHEIROS


Os médicos autorizaram-me o uso moderado de bebidas alcoólicas. Para festejar a notícia, ao entardecer entrei na taberna A Estrela da Suécia, para beber uma taça de rum quente. Al balcão havia pescadores, guardas fiscais, carregadores. Acima de todas as vozes pontificava a de um velho fardado de guarda prisional, que desatinava ebriamente num mar de verborreia: - E todas as quartas-feiras a donzela perfumada me dá uma nota de cem coroas para que a deixe a sós com o recluso. E à quinta as cem coroas já marcharam em cerveja que nunca mais acaba. E quando chega ao fim da hora da visita a donzela sai com o fedor da cadeia nos seus vestidos elegantes; e o recluso torna para a cela com o perfume da donzela na sua roupa de condenado. E eu fico com o cheiro da cerveja. A vida não passa de uma troca de cheiros.
- A vida e também a morte, podes dizê-lo – respondeu outro bêbado, cuja profissão, como fiquei logo a saber, era coveiro – Eu com o cheiro da cerveja tento tirar de cima o cheiro a morto. E só o cheiro a morto te tira da cima o cheiro a cerveja, como a todos os bebedores a que tenho de abrir a cova.
Interpretei este diálogo como um aviso para me pôr em guarda: o mundo está a desfazer-se e tenta atrair-me para a sua dissolução.

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