quarta-feira, 24 de outubro de 2018

SARAMAGUEANDO



«Deixe que me despeça com um beijo, está a chegar o tempo deles, Para mim já vai tardando, Só uma pergunta mais, Diga, Já começou a escrever a História do Cerco de Lisboa, Já, Não sei se continuaria a gostar de si se me respondesse que não, adeus.»

José Saramago em História do Cerco de Lisboa

«Tenho a impressão que aquilo que em mim podia ser poético está nos romances.»

É uma frase perdida nas muitas e muitas entrevistas que Saramago deu.

Uma outra:

«Considero difícil escrever um romance sem lhe meter uma história de amor, mesmo que se trate de amores infelizes. Sempre terá que haver um homem e uma mulher e neste livro a história de amor empurrou a história da guerra.»

Podemos dizer que História do Cerco de Lisboa é um livro de História,  mas, no fundo dos fundos, é um romance de amor.

No tempo da sua publicação, José Carlos de Vasconcelos não tem dúvidas em considerar a História do Cerco de Lisboa como o melhor romance de Saramago:

 «O de mais notável construção, simultaneamente o mais inventivo e o mais equilibrado, o de maior riqueza e até complexidade de planos, que se vão sucedendo, entrelaçando ou quase sobrepondo, apesar de oito séculos de história os separar, e ao mesmo tempo o mais límpido até na escrita.»

É a história de um homem, Raimundo Silva de seu nome, que está a rever um livro que se chama História do Cerco de Lisboa. 

Intencionalmente apõe um não a um texto histórico sobre o cerco de D. Afonso Henriques a Lisboa.

«Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados ajudarão os portugueses a tomar Lisboa.
(…)
É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente.»

O erro é descoberto, publica-se a obra com uma errata e os directores da editora chamam Raimundo à pedra dizendo-lhe que semelhante coisa não poderá voltar a acontecer sob pena de prescindirem dos seus serviços de revisor.

Maria Sara, responsável da editora pelos revisores, presente na reunião mas que nada disse, chama Raimundo Silva ao seu gabinete e entrega-lhe um exemplar do livro sem a errata. E a partir do voluntário erro incita-o a escrever a reinvenção da história do cerco de Lisboa.

O amor irrompe entre Sara e Raimundo, razão para a citação que está no topo do texto e que se repete:

«Deixe que me despeça com um beijo, está a chegar o tempo deles, Para mim já vai tardando, Só uma pergunta mais, Diga, Já começou a escrever a História do Cerco de Lisboa, Já, Não sei se continuaria a gostar de si se me respondesse que não, adeus.»

Legenda: capa de História do Cerco de Lisboa publicado pela Porto Editora. A caligrafia da capa é da autoria de Álvaro Siza Vieira.

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