Este livro, Memorial do Convento poderia começar como tantos e tantos outros livros começam: Era uma vez…
«Era uma vez um rei que
fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que
construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha
poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.»
Estavam a ser sobrevoados
pela Passarola de Bartolomeu de Gusmão,
«uma história que nos
deixa sem fôlego», no
sábio dizer de Armando Silva Carvalho.
Ainda Saramago:
«Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi-la contra si, correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, e mais abaixo ainda se os sentidos de um e do outro despertaram no calor do sono e na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam quando se deitaram, que este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele. Talvez ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento, a cruz e o sinal feitos e traçados com o sangue da virgindade rasgada, quando, à luz amarela do candil, estando ambos deitados de costas, repousando, e, por primeira infracção aos usos, nus como suas mães os tinham parido, Blimunda recolheu da enxerga, entre as pernas, o vivíssimo sangue, e nessa espécie comungaram, se não é heresia dizê-lo ou, mais ainda, tê-lo feito. Meses inteiros se passaram desde então, o ano é já outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio e a barra, e, apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não Baltasar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande alívio que levanta o peito e é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode, emendando a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se tratava de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá.»
1 comentário:
Um dos melhores livros da literatura mundial !!!
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