E outros momentos. Soltos. Deslumbrantes na
opaca escuridão do que não volta mais. Cada um terá os seus, a sua história
privada, a sua respiração. A última reunião da Comissão de Escritores do MUD,
a que tinha pertencido toda a gente (faltavam às vezes cadeiras) e a que, por
fim, já só compareciam, inutilmente renitentes, três pessoas: a Manuela Porto,
o Flausino Torres, eu. Que coordenava o sector desde a própria ideia de o
formar. Como o dos artistas (arquitectos, pintores, escultores, desenhadores,
fotógrafos, publicitários) que, a partir de 46, fizeram juntos as suas
Exposições num clima de entusiasmo e unidade como nunca houvera no país nem sei
se, exactamente assim, terá voltado a haver.
Momentos soltos lucilando na distância. O José Cardoso Pires a
bater-me à porta com o seu primeiro original. O Piteira a paginar comigo, em
minha casa, à noite, a Gazeta musical e de todas as artes.
A Manuela Porto foi quem primeiro declamou a «Ode Marítima», como
nunca mais ninguém faria. E, antes (ou depois?), a nossa poesia que mal ainda despontava,
no velho Salão de O Século,
com uma palestra introdutória do Armando Bacelar. Vejo-a a beijar, num pé, a
minha filha então de meses: «Posso? E um milagre!» E, a seguir, na redacção da
Eva, que ela chefiava e onde a vi pela última vez. Estava assente que eu
passasse por lá para lhe dar a senha de contacto com o MUNAF, organização
ilegal a que resolvera aderir. Era um prodígio de vontade e de coragem aquela
mulher tão frágil, delicada, toda ela poesia. Mas tinha no gabinete,
inesperadamente, alguém que não me devia ver, a directora da revista. Vem lá de
dentro, à pressa, sorridente. Traz nas mãos as Cartas a um jovem poeta. Deixa a
porta entreaberta, só o bastante para que a ouçam bem. «Desculpe não poder hoje
recebê-lo. Está aqui o livro. Gostei muito». Mímica apressada a explicar
porquê o livro e aquela conversa. Dois dias depois suicidava-se.
E vejo o Flausino também, muito mais tarde, com o seu arcaboiço
de camponês, grossa samarra de gola levantada, já a noite caíra, à porta da sua
casa de Tondela, em pleno campo, com os braços estendidos e os olhos molhados:
«Tu é que tinhas razão». Enquanto eu, durante o abraço demorado e apertado,
retomava um convívio interrompido durante anos: «E era preciso ires tão
longe?»
Regressara de Praga, depois da invasão. Passara por lá as passas
do Algarve nas mãos de uma conhecida dirigente, dessas de «antes quebrar que
torcer», que se deslocava em luxuosos automóveis de Estado, vivia em bons
hotéis por lá e anda agora por aí, nos períodos eleitorais, a fazer a propaganda
de tudo o que seja de Direita.
Exactamente a mesma. Quando, em 42, fiz a minha conferência na
Universidade Popular sobre arte moderna, essa expressão acabada da «burguesia
decadente», foi ela que comentou: «Que grande desilusão!» Mas não se referia à
qualidade da conferência. A minha grande falha ideológica é que a deixara
desolada...
Varrer o lixo. Sem descanso. Conservar o que nos foge por entre os
dedos, como fumo.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: Manuela Porto
Sem comentários:
Enviar um comentário