sábado, 1 de setembro de 2018

VARRER O LIXO


E outros momentos. Soltos. Deslumbrantes na opaca escuridão do que não volta mais. Cada um terá os seus, a sua história privada, a sua respira­ção. A última reunião da Comissão de Escritores do MUD, a que tinha pertencido toda a gente (fal­tavam às vezes cadeiras) e a que, por fim, já só compareciam, inutilmente renitentes, três pessoas: a Manuela Porto, o Flausino Torres, eu. Que coor­denava o sector desde a própria ideia de o formar. Como o dos artistas (arquitectos, pintores, esculto­res, desenhadores, fotógrafos, publicitários) que, a partir de 46, fizeram juntos as suas Exposições num clima de entusiasmo e unidade como nunca houvera no país nem sei se, exactamente assim, te­rá voltado a haver.
 Momentos soltos lucilando na distância. O José Cardoso Pires a bater-me à porta com o seu pri­meiro original. O Piteira a paginar comigo, em minha casa, à noite, a Gazeta musical e de todas as artes.
 A Manuela Porto foi quem primeiro declamou a «Ode Marítima», como nunca mais ninguém faria. E, antes (ou depois?), a nossa poesia que mal ainda despontava, no velho Salão de O Século, com uma palestra introdutória do Armando Bacelar. Vejo-a a beijar, num pé, a minha filha então de meses: «Posso? E um milagre!» E, a seguir, na redacção da Eva, que ela chefiava e onde a vi pela última vez. Estava assente que eu passasse por lá para lhe dar a senha de contacto com o MUNAF, organiza­ção ilegal a que resolvera aderir. Era um prodígio de vontade e de coragem aquela mulher tão frágil, delicada, toda ela poesia. Mas tinha no gabinete, inesperadamente, alguém que não me devia ver, a directora da revista. Vem lá de dentro, à pressa, sorridente. Traz nas mãos as Cartas a um jovem poeta. Deixa a porta entreaberta, só o bastante para que a ouçam bem. «Desculpe não poder hoje rece­bê-lo. Está aqui o livro. Gostei muito». Mímica apressada a explicar porquê o livro e aquela con­versa. Dois dias depois suicidava-se.
 E vejo o Flausino também, muito mais tarde, com o seu arcaboiço de camponês, grossa samarra de gola levantada, já a noite caíra, à porta da sua casa de Tondela, em pleno campo, com os braços estendidos e os olhos molhados: «Tu é que tinhas razão». Enquanto eu, durante o abraço demorado e apertado, retomava um convívio interrompido du­rante anos: «E era preciso ires tão longe?»
Regressara de Praga, depois da invasão. Passara por lá as passas do Algarve nas mãos de uma co­nhecida dirigente, dessas de «antes quebrar que torcer», que se deslocava em luxuosos automóveis de Estado, vivia em bons hotéis por lá e anda agora por aí, nos períodos eleitorais, a fazer a propa­ganda de tudo o que seja de Direita.
Exactamente a mesma. Quando, em 42, fiz a minha conferência na Universidade Popular sobre arte moderna, essa expressão acabada da «burgue­sia decadente», foi ela que comentou: «Que grande desilusão!» Mas não se referia à qualidade da con­ferência. A minha grande falha ideológica é que a deixara desolada...
Varrer o lixo. Sem descanso. Conservar o que nos foge por entre os dedos, como fumo.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Manuela Porto

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