Nada mais fácil do que identificar-se comigo, por agora o meu
comportamento exterior é o de um viajante que perdeu uma ligação, que é uma
situação que faz parte da experiência de toda gente; porém uma situação que se
verifica no início de um romance remete sempre para qualquer outra coisa que
aconteceu ou que está prestes a acontecer, e é esta qualquer outra coisa que
torna arriscada a identificação comigo, para ti leitor e para ele autor; e
quanto mais cinzento, vulgar e indeterminado for o início deste romance mais tu
e o autor sentirão crescer uma sombra de perigo sobre a fracção de «eu» que
irreflectidamente investiram no «eu» de uma personagem de que ignoram a
história que ela traz consigo, como aquela mala de que tanto desejava conseguir
livrar-se. Livrar-me da mala devia ser a primeira condição para restabelecer a
situação anterior: anterior a tudo o que sucedeu a seguir. É a minha intenção
quando digo que gostaria de remontar o curso do tempo: gostaria de apagar as consequências
de certos acontecimentos e restaurar uma condição inicial. Mas todos os
momentos da minha vida a carretam um montão de factos novos, e todos estes
factos novos acarretam s suas consequências, pelo que quanto mais tento voltar
ao momento zero de que parti, mais dele me afasto: embora tendo todos os meus
actos a intenção de apagar consequências de actos precedentes e conseguindo até
obter resultados apreciáveis neste apagamento, que me abrem o coração a
esperanças de alívio imediato, contudo tenho de considerar que cada uma das
minhas acções para apagar acontecimentos precedentes provoca uma chuva de novos
acontecimentos que complicam ainda mais a situação anterior e que terei de
tentar apagar por sua vez. Por isso tenho de calcular bem todas as acções de
modo a obter o máximo de apagamento com o mínimo de recomplicação.
Italo Calvino em Se Numa Noite de Inverno Um Viajante
Sem comentários:
Enviar um comentário