segunda-feira, 3 de setembro de 2018

UM VIAJANTE QUE PERDEU UMA LIGAÇÃO


Nada mais fácil do que identificar-se comigo, por agora o meu comportamento exterior é o de um viajante que perdeu uma ligação, que é uma situação que faz parte da experiência de toda gente; porém uma situação que se verifica no início de um romance remete sempre para qualquer outra coisa que aconteceu ou que está prestes a acontecer, e é esta qualquer outra coisa que torna arriscada a identificação comigo, para ti leitor e para ele autor; e quanto mais cinzento, vulgar e indeterminado for o início deste romance mais tu e o autor sentirão crescer uma sombra de perigo sobre a fracção de «eu» que irreflectidamente investiram no «eu» de uma personagem de que ignoram a história que ela traz consigo, como aquela mala de que tanto desejava conseguir livrar-se. Livrar-me da mala devia ser a primeira condição para restabelecer a situação anterior: anterior a tudo o que sucedeu a seguir. É a minha intenção quando digo que gostaria de remontar o curso do tempo: gostaria de apagar as consequências de certos acontecimentos e restaurar uma condição inicial. Mas todos os momentos da minha vida a carretam um montão de factos novos, e todos estes factos novos acarretam s suas consequências, pelo que quanto mais tento voltar ao momento zero de que parti, mais dele me afasto: embora tendo todos os meus actos a intenção de apagar consequências de actos precedentes e conseguindo até obter resultados apreciáveis neste apagamento, que me abrem o coração a esperanças de alívio imediato, contudo tenho de considerar que cada uma das minhas acções para apagar acontecimentos precedentes provoca uma chuva de novos acontecimentos que complicam ainda mais a situação anterior e que terei de tentar apagar por sua vez. Por isso tenho de calcular bem todas as acções de modo a obter o máximo de apagamento com o mínimo de recomplicação.

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